«(…) O
problema do desconhecimento da poesia de Teixeira de Pascoaes é pois de outra
ordem e prende-se talvez em primeiro lugar com a inadequação dos nossos
próprios instrumentos de leitura. Há duas fontes a que geralmente a
interpretação literária recorre: as fontes exotéricas,
que são as mais conhecidas e acessíveis, e que intentam no melhor dos casos uma
explicação da obra; e as fontes esotéricas que requerem um saber operativo e
intentam por seu lado a sua compreensão. As fontes exotéricas contribuem, por tudo aquilo que ajudam a simplificar, para
a divulgação da obra, enquanto as fontes esotéricas, por tudo aquilo que complexificam,
dão à obra um sentido outro, geralmente desconhecido, descobrindo-lhe uma
interioridade oculta que se aprofunda e alteia sem se esgotar. Eu creio que a
interpretação literária em Portugal se tem ressentido demasiado, sobretudo nos
últimos sessenta anos, que tantos são os que passaram desde o fim da Renascença
Portuguesa, do uso e do abuso das fontes exotéricas e consequentemente da falta
de um saber operativo, capaz de dar à obra toda a sua interioridade infinita. A
poesia portuguesa, quer antiga quer moderna, tem sido lida apenas numa
horizontalidade acessível e chã, mostrando a crítica actual notável
incapacidade em aprofundar todos aqueles aspectos que representam uma
verdadeira face oculta ou sombria da nossa melhor poesia.
Por muito
úteis que cultural e socialmente as fontes exotéricas se possam mostrar, elas
nunca poderão ambicionar à exclusividade da prática interpretativa, como em
certa altura parecem ter pretendido, pois isso seria o mesmo que pretender que
o melhor da nossa poesia se podia esgotar em simples vulgarizações, de tipo
sociológico ou outro. A verdadeira interioridade poética, que dá em simultâneo
voz e dificuldade à obra, só pode ser revelada (e entendida) por uma outra
prática interpretativa que passa da explicação divulgadora à compreensão
futurante. Neste sentido, a leitura das duas frases de José Marinho destina-se
em primeiro lugar a ser meditada pelos intérpretes não na sua relação com a poesia,
mas na sua relação com os seus próprios instrumentos de interpretação.
Acreditamos que as frases de Marinho apelam a qualquer coisa mais que ao simples
discurso de promoção editorial, tão em voga hoje quando se fala de crítica literária.
Conhecer a nossa poesia não pode ser falar simplesmente dela. Se assim se lerem
as frases de Marinho, já muito do que outrora se escreveu sobre Camões e hoje
se escreve sobre Fernando Pessoa perde o seu interesse, pois tudo o que fez e
faz é reduzir a poesia de Camões àquele camonismo
oficial de que fala António Telmo, e que é a sua poesia traduzida em dois
ou três lugares estafados (anti-islamismo, defesa dos descobrimentos na sua
versão oficial, ortodoxia religiosa), e a de Pessoa a um conjunto de
superficialidades.
Começar a
compreender a poesia de Pascoaes não é pois, em meu entender, começar a falar
muito dela, mas antes encontrar o verdadeiro modo de falar dela. As frases de
Marinho destinam-se mais a confrontar o intérprete com os seus próprios meios, que
carecem geralmente de alcance, que propriamente a confrontá-lo com os autores
ignorados da nossa literatura. Tivesse a interpretação literária do século XX
português seguido na esteira do Sampaio Bruno da Geração Nova, do Fernando Pessoa de A Nova Poesia Portuguesa ou do Teixeira Rego de Estudos e
Controvérsias e teríamos hoje um panorama bem diferente daquele que temos, em
que se ignora praticamente tudo o que verdadeiramente importa da nossa poesia.
O fim, pelo menos aparente, da Renascença Portuguesa e a dissolução de uma
verdadeira república de pensadores veio definitivamente deitar por terra
durante muitos anos a possibilidade de um trabalho colectivo em profundidade sobre
a nossa poesia e a nossa literatura. Livros tão ricos de ensinamentos, nos
domínios da exegese e da hermenêutica literárias, como aqueles que acima apontámos
ficaram durante muito tempo no esquecimento, sem qualquer continuidade». In
António Cândido Franco, Eleonor na Serra de Pascoaes, Edições Átrio, Lisboa,
Colecção o Chão do Touro, 1992, ISBN-972-599-042-0.
Cortesia de
Átrio/JDACT