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A Ideia e os símbolos
«Um século depois do 5 de
Outubro e mais de oito décadas após a sua queda, a Primeira República é
ainda hoje memorada pela revolução política que lhe deu origem e pelas
vicissitudes de um regime instável que, de solução, se tornou ele próprio, com
o decorrer do tempo, num problema a resolver. Contudo, a República e o
Republicanismo foram, antes de regime, um movimento cultural regenerador
que, para além da mudança do sistema monárquico, pugnava pela democratização da
sociedade portuguesa, pela laicização das instituições e das consciências e
pela modernização económica e social do país. Constituiu-se como movimento em
meados do século XIX, depois do afloramento revolucionário de 1848, instituiu-se como partido com a
finalidade de disputar o poder político a partir da década de 80, falhou o
golpe revolucionário em 31 de Janeiro de 1891, reforçou o seu compromisso histórico interclassista no modo
ordeiro como disputou as eleições parlamentares e municipais e, sustentado por
um bloco histórico vasto e diversificado, preparou a transição revolucionária
de 1910 a partir do Congresso de
Setúbal do ano anterior. A crise política e financeira de finais de século XIX,
o arcaísmo sócioeconómico e cultural do país e a sua dependência externa
encarregaram o Partido Republicano (as classes médias urbanas, as suas
elites civis e militares e as aristocracias operárias) de resgatar Portugal do atraso histórico que todos diagnosticavam
e do declínio inevitável, caso não
fosse invertido o rumo dos acontecimentos nefastos que se iniciaram com o Ultimato
de 1890.
Para os republicanos
históricos da Geração de 90 e também para a nova geração de 1910, intransigente e rebelde, a
República era a sua Dulcineia. Com a
sua implantação ambicionavam tudo: o início de uma profunda reorganização que
deveria modificar de alto a baixo toda a arcaica sociedade portuguesa.
Imaginavam irradicar o analfabetismo que impedia a modernização social e
conduzia à desmoralização das elites e ambicionavam modernizar o sistema
político, pelo combate a todos os messianismos e corrupções clientelares que
apontavam ao rotativismo monárquico. As instituições que queriam (escola,
exército) e os órgãos de soberania que idealizavam (Parlamento, Municípios,
etc.) deviam guiar-se pelos princípios democráticos que orientavam as
sociedades modernas, como parecia acontecer na França da III República.
Sonhavam com um verdadeiro projecto ultramarino, modernizador e autonomista e
pretendiam desenvolver uma política de independência
nacional, sustentada sobre a valorização dos recursos nacionais e
africanos. Prometiam resolver, de forma justa, a condição económica e social das classes humildes e substituir uma
moral católica e provinciana por uma moral secularizada e cosmopolita, sustentada
na militância do político doutrinador,
do militar educador e do professor sacerdote. Perante um país
dependente, arcaico, rural e analfabeto, as elites republicanas (de homens
de leis, de escritores e jornalistas, de oficiais das forças armadas, de
médicos e de professores) incumbiram-se a si próprias de uma missão histórica: a de salvar a Pátria através da República, libertando
o país do passado e das suas dependências crónicas. Se na primeira fase o
movimento republicano era essencialmente federalista e democrático, na segunda,
depois do Congresso de 1891, o seu projecto é o de galvanizar os
portugueses para o ressurgimento nacional,
através de um projecto interclassista e social-republicano, aliciante para as
elites e pequenos possuidores e produtores e capaz de agregar também o
operariado, muito eivado pelas ideologias anarquistas e socialistas.
Em finais de 1908, este compromisso histórico
firmado em torno da refundação regeneradora da Pátria pela fusão da Nação com a
República estava praticamente consolidado. O progresso da Ideia era assinalável: um
núcleo de 7 deputados republicanos eleitos em 5 de Abril (onde avultava a
figura de Afonso Costa) demolia de forma arrasadora todas as tentativas
reformadoras da Monarquia Nova; a vitória da lista republicana
para a Câmara de Lisboa, em Novembro desse ano, servida por reconhecidas
competências técnicas na vereação, credibilizava a futura acção governativa do país
pelos republicanos; uma acção de massas explosiva, centrada sobre comícios
monumentais e uma vida associativa dos Centros Escolares Republicanos,
intensa e proveitosa, juntava milhares de portugueses ao projecto republicano.
O movimento reproduzia-se em organização, recrutamento e força: Lisboa era
republicana e a revolução seria matemática
e fatal, pensava-se em finais de 1908.
De fora deste bloco regenerador ficariam apenas as elites monárquicas e o clero
reaccionário, que seria preciso destronar das habituais e ancestrais fórmulas
de domínio: social, religioso e político. Sabia-se bem como o recrutamento dos
homens para a Ideia republicana havia de fazer-se pela doutrinação e como
esta havia de sustentar-se sobre uma nova religião
cívica, assente na festa cívica,
na reconstrução do imaginário colectivo, numa nova gramática simbólica e mesmo
numa renovação das fórmulas administrativas.
A nova unidade nacional,
superadora da descrença e anunciadora da esperança, congregou-se em torno dos
grandes símbolos nacionais, pelo recurso à História. Heróis, feitos valorosos e
datas da independência da nação ressuscitam a verdadeira raça portuguesa e alimentam a alma do futuro homem novo republicano. A educação cívica e política passou a realizar-se
por meio de novos manuais escolares, em festas e cerimónias públicas e em
centenas de milhares de objectos que, pelo uso comum, veiculavam os ideais
republicanos. Multiplicaram-se os símbolos da Ideia, materializada na
Raça, na Família, na Pátria e na Humanidade. Destes, sempre sobressaíram três: o
Hino Nacional (A Portuguesa),
a Bandeira Nacional e a República
(um busto ou um corpo completo de mulher, de seios desnudados e barrete
frígio). A Portuguesa,
elaborada por altura do Ultimato, com letra de Henrique Lopes Mendonça e
música de Alfredo Keil, mantinha-se proibida desde 1891, altura em que animou a revolta do 31 de Janeiro no
Porto, tendo sido adoptada pelo Governo Provisório em 1911 como Hino Nacional. Trata-se de um texto de carácter
nacionalista e patriótico, onde estão omissas referências à democracia ou à
República, embora tenha sido cantado em reuniões e comícios, a par da Marselhesa, esse sim um hino de
honra à liberdade. Por seu lado, a bandeira verde-rubra acendeu uma
querela que só terminará com a sua adopção, na Festa da Bandeira Nacional,
em 1 de Dezembro de 1910, por
decisão do Governo Provisório (Decreto de 22/11/1910). Autores como João
Medina entroncam a bandeira nas tradições carbonárias e maçónicas que
antecederam a implantação da República. Na verdade, as cores verde e rubra e a
esfera armilar, preenchida pelas quinas, estão presentes em muitas das
bandeiras que guiaram a acção conspirativa e revolucionária de entre 1907
e 1910». In Maria C. Proença e Luís
Farinha, República e Republicanismo, Instituto Camões, Março 2009.
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