Renascença Portuguesa
e a Guerra. O projecto cultural da
Renascença Portuguesa. O contributo de Jaime Cortesão. Profeta
dessa ideia
«(…) Continuando este percurso pela génese da Renascença
devemos recordar as iniciativas que antes da sua criação congregaram alguns dos
seus fundadores e contribuíram para a formulação concreta do projecto. Juntos
no Porto (1906), Pascoaes, Leonardo Coimbra e Cortesão,
por feliz acaso ou prenúncio inspirador, acabam por participar em projectos
diversos, que agora podemos considerar como preparatórios da Renascença. É o caso do periódico
Nova Silva e do grupo d’Os Amigos do ABC (1908),
sedeado no Porto, na Rua da Fábrica, onde se iniciavam, segundo o testemunho de
um contemporâneo, os operários no conhecimento
das primeiras letras e se tentava formar
o cérebro na doutrina anarquista, então familiarmente designada, entre nós,
pela palavra Ideia. Cortesão confirma esta acção de educação cívica
activa e de vulgarização doutrinária e cultural, lembrando que era intuito desse grupo realizar uma fraterna
acção cultural junto das camadas populares. Segundo Veiga Pires, muitos
académicos dessa geração integraram este centro
de doutrinação e combate que exerceu grande influência cultural e ideológica:
aí era lido e comentado Kropotkine como
um profeta dos tempos, visionário duma humanidade perfeita.
Um grupo que se inspirava na leitura social dos ideais huguescos, e se empenhou numa acção alternativa à pedagogia do regime. Acção
que a Renascença irá efectivar com as publicações, conferências e outras
iniciativas de cariz pedagógico, é o caso das Universidades Populares, embora
liberta do inicial ímpeto anarquista presente nas primeiras iniciativas. De
notar ainda que possuímos poucas referências relativamente aos Amigos do ABC, nomeadamente no
que se refere à sua estrutura, composição, programa e funcionamento. O próprio Cortesão
solicita, em carta enviada a Álvaro Pinto em 1951, informações sobre a génese da Renascença em que surgem
algumas referências ao referido grupo. Não obstante este condicionalismo
importa considerar estas iniciativas pelo carácter precursor que assumiram em
relação à Renascença.
Concretização do sonho
Na tentativa de perceber como se concretiza o sonho e como o
nosso anarquista libertário da juventude transmuda as suas aspirações e ideais para
o investimento na construção do grande projecto cívico e cultural, A Renascença, cruzaremos dois documentos
essenciais. O primeiro contemporâneo do referido movimento, carta a Raul
Proença, a que sumariamente fizemos referência, e o outro, escrito
posteriormente, reflexões em torno da Renascença. Separam-nos quarenta
anos de uma vida pautada por um combate permanente pela difusão dos ideais
democráticos e pela vulgarização histórica, mas une-os a mesma força interior,
o mesmo imperativo ético e o mesmo idealismo de um viajante no mundo real, para
utilizar uma expressão de Raul Proença. Nas palavras que dirige ao seu
contemporâneo, Cortesão considera-se invadido por um proselitismo sagrado que o impelia para
a acção, para o desempenho de uma espécie de missão, de apostolado laico, tendo
em vista o bem comum e o progresso da humanidade. Numa sociedade em que são os burros que triunfam e portanto a
burrice também e em que escasseiam os grandes
homens e as grandes ideias, cabia
aos intelectuais a missão de desempenharem uma acção cultural e pedagógica que
permitisse a criação de um público
consciente e ilustrado.
As bases desta nova organização
foram lançadas em Coimbra, numa reunião em que participaram, além de Cortesão,
Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e Augusto Casimiro. Os
ideais destes intelectuais que se reuniram no Choupal não poderão ser considerados como vãs aspirações. O
diagnóstico pessimista do presente pressupunha a inventariação de estratégias
para a superação da crise moral e cultural. Dois fins essenciais teriam congregado
estes homens na concretização desta obra
titânica: restituir Portugal à
consciência dos seus valores espirituais próprios e promover através de
uma série de iniciativas uma acção cultural e educativa junto de todas as camadas
da população. Esta necessidade, vinculada às esperanças de regeneração moral, filia-a
Cortesão na geração dos Vencidos
da Vida. Filiação que não surge isenta de críticas, sobretudo no
diagnóstico excessivamente decadentista e céptico que esses Vencidos fizeram do
Portugal finissecular. Foram as suas últimas realizações, principalmente as de Ramalho Ortigão e Oliveira
Martins, que permitiram perceber que havia um programa implícito a realizar, um programa de regeneração
retomado, e em certa medida renovado pela Renascença». In Elisa
Neves Travessa, Jaime Cortesão, Sinais do Pendsamento Contemporâneo, Ensaio,
Política, História e Cidadania, 1884-1940, ASA Editores, Setembro de 2004, obra
adquirida e autografada em Fevereiro de 2006, ISBN 972-41-4002-4.
Cortesia de Edições ASA/JDACT