Não há melhor fragata do que um
livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson
«(…) A abordagem até fora afável de parte a parte, apesar dos tiques de
ansiedade e cerimónia na apresentação da obra, pois esta, como explicou Alberto
Reis a Fernando Pessoa no vestíbulo do prédio, nascera da necessidade
de estimular a sua existência através da escrita e certamente repovoar os dias
e as noites com uma presença que, embora não o fizesse sentir-se sarado da
perda da esposa, pelo menos lhe desse ânimo e rendimento emocional nesse exercício
tão intenso e perturbador que consiste em resgatar o sentido da vida e evitar
assim toda a fraqueza e a lamentável ausência que levam um homem a perder-se e
a sentir-se vencido pela fúria da solidão. É evidente que a generosidade de Fernando
Pessoa fê-lo aceitar o pedido; era prática corrente a delicadeza na
cedência a uma análise a obra alheia, mesmo que a opinião do avaliador não
satisfizesse plenamente o autor e este se sentisse melindrado por tão pouco agrado
e insensibilidade. Neste caso, maior ódio não podia sentir Alberto Reis pelo seu
vizinho Fernando Pessoa, quando ao fim de alguns dias foi encontrar o
manuscrito junto com umas velhas revistas no recipiente do lixo na entrada do
prédio. Inconsolável e em choque, o pobre polícia pegou na sua obra e, como
quem guarda os restos mortais da própria vida, decidiu no entanto manter-se em
silêncio e considerar este grave incidente uma provocação. Embora os seus
modestos versos não lhe trouxessem estímulo nem reconhecimento por parte de Fernando
Pessoa, quase sempre a subestimação e o desprezo funcionam como
contra-obra da criação, Alberto Reis sentiu nesta humilhação
o desejo amaldiçoado da vingança.
Adoptando uma atitude propositadamente indiscreta, Alberto Reis deslocou o
olhar da esquerda para a direita, e foi precisamente neste movimento que lhe
escapou o vulto de Fernando Pessoa atrás da janela do seu quarto. Espreitava
provavelmente o tempo, esse estado que influência e condiciona o espírito com
que enfrentamos as energias emocionais do dia, tendo neste sentido vantagem o
poeta, pois, em concreto imaginário e assente numa base de ficções, sair para a
rua sendo outro servia perfeitamente
o propósito de ser qualquer um
menos aquele que os outros identificavam nele, mesmo que as parecenças
contradigam o que dele estamos habituados a ver. Podia até dizer-se,
referindo-se a Fernando Pessoa, que dias há em que se questiona, ainda
enrolado nas roupas da cama ou já vestido para sair, num impasse de
exclusividade e preocupação por ontem ter sido outro e hoje não querer sentir-se o mesmo, como um fato que não
desejamos voltar a vestir tão cedo, e classifica esta biografia plural,
digamos, como uma Biografia da Insuportabilidade do Eu Único e Adaptado a
Outros Privilégios Mentais. Estava Fernando Pessoa a fazer as provas da sua
indumentária psicofísica enquanto Alberto Reis observava agora a inquilina
do primeiro andar esquerdo a abrir a janela da sala». ». In Fernando Esteves Pinto, O
Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições Parsifal, Lisboa, 2013,
ISBN 978-989-98521-0-5.
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