De acordo com o original.
O
capitão ‘Bonina’
«(…) O que é certo é que, em
pleno século XVII, o frade apparecia por toda a parte, nas horas de alegria ou
de enfado. Estava em moda. O convento tanto era a hospedaria de um enfastiado
como de um converso. O enfastiado, se conseguia readquirir o apetite das
mundanidades, voltava ao mundo tantas vezes quantas se desenfastiava, e ao
convento tantas quantas tornava a aborrecer-se. O converso convicto sepultava-se
vivo na claustra, e era o seu exemplo que attraia os blasês ephemeros, os suppostos arrependidos. Mas o convento era o
desenlace forçado de todas as situações, de todos os dramas sentimentaes.
Lembrava facilmente como um expediente que estava em voga, e facilmente se
esquecia também. Citarei um exemplo. No século XVII os costumes de Portugal e Castella
mediam-se pelo mesmo estalão; portuguezes e castelhanos vestiam e pensavam pelo
mesmo figurino, a despeito de Quevedo appellidar de sebosos os portuguezes. Pois uma famosa cómica hespanhola,
Marianna Romero, esposa divorciada de Luiz Orti, entrou no convento das
Trinitarias Descalzas, de Madrid, e tomou o nome de Marianna da Santíssima
Trindade. Julgava-se arrependida, contricta; queria abandonar o mundo. Mas como
as grades dos conventos eram n'esse século
muito frequentadas, quasi publicas, não a separaram tanto do inundo que não
sahisse do convento para casar com o comediante Manuel Angel, dragão de
mulheres, diz um escriptor hespanhol, que já era viuvo de cinco, e que mandou para
o outro mundo a Romero, que era a sexta. Para seduzir as almas n’um momento de
desconforto, o convento tinha por si a tradição antiga. Vinha de longe o
costume de amortalhar no habito monástico um coração maltratado de desventuras amorosas.
No século XIII morreu no convento
de S. Francisco de Santarém um frade que se chamava António Conceição. A vida d’este
frade é extremamente romântica. Amava no século uma dama, que lhe era superior
em nascimento e riqueza. Por a merecer, estava disposto aos maiores
sacrifícios. Ella, para ser sua esposa, impoz uma condição que lhe parecia
irrealisavel: que elle lhe fosse buscar um frasquinho de agua do Jordão. O frade
António, assim que isto ouviu, abandonou a pátria, gastou dois annos n’uma viagem
á Palestina, e voltou com o frasquinho de agua do Jordão. É' grande o numero de
gentilezas que se teem dito ou feito a propósito de um copo d’agua, seja do
Jordão ou não seja. Occorrem-me agora duas. Conta Fernam Lopes que quando o
monarca João I poz cerco á villa de Chaves, e ordenou que aos habitantes fosse
defeza a agua do rio, enviava cada dia um cântaro de agua fresca do Tâmega a D.
Mecia Vasques, mulher do alcaide. Outra gentileza tem menor significação por
ser de homem para homem. Um cavalleiro portuguez, do tempo do rei João II,
chamava-se Pedro Mello, e viera a ser alcunhado o do Pucaro. Servindo uma vez o rei que estava á meza,
cahiu-lhe da bandeja o copo da agua. Os outros fidalgos riram-se. João II
disse: … pois nunca lhe cahiu a lança
em Africa! D’aqui a alcunha, o
do Pucaro.
Tornando ao caso. O frade António
viu premiada a sua proesa: desposou a dama. Mas a sua felicidade não foi longa.
Viuvou, e fez-se donato franciscano em Castella. Mereceu ser um dos mais reputados
pregadores da sua ordem, e, passando a Portugal, foi guardião do convento de S.
Francisco em Évora. Veio a morrer em Santarém, sua terra natal. No século XV João
Silva apaixonou-se por D. Leonor, filha do rei Duarte I, em cuja corte
servia. Namorado, tomara por divisa um falcão volante com a legenda Ignoto Deo. Contrariado pelo
casamento de D. Leonor com o imperador Frederico III, resolveu acompanhal-a,
fazendo parte da comitiva. Assistiu ao casamento em Roma, mas desde essa hora
angustiosa da sua vida errou solitário longo tempo pelos Apenninos com o nome
de Amadeu. Morreu no conventinho da Paz, em Roma, ficando conhecido na historia
por Beato
Amadeu.
Sua
irmã, D. Brites Silva, que acompanhara para Castella a infanta D. Izabel, mãe
da rainha antonomasticamente chamada Catholica,
só porque por amor da sua formosura se batiam á espada os fidalgos castelhanos,
sem que ella lhes desse trella e ousio, recolheu-se ao convento das domínicas de
Toledo. A tradição galante dos conventos era esta, desde tempos remotos. No
século XVII a tradição refinou, porque foi aquelle um século de beaterio
devasso, escandalosamente freirático». In Alberto Pimentel, Vida Mundana de um
Frade Virtuoso, Perfil Histórico do Século XVII, PQ9191A65Z18, Livraria António
Pereira, Lisboa, 1889.
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