O
homem de ideias
«Não
é lícito dizer que tem ideias aquele que as foi buscar a outro, que envergou um
sistema já pronto, que não o construiu ele mesmo a pouco e pouco, à medida que
se ia alargando e aprofundando a sua visão do mundo; para ter ideias é necessário um trabalho de autoformação, de modelação
contínua da alma, uma assimilação que não cessa de tudo o que uma determinada
personalidade encontra de assimilável no que a cerca, ou passado ou presente; a
ideia surge da vida própria e não da vida dos outros; o homem que tem
individualidade (é muito difícil ser indivíduo), ou a busca, pode
inserir no seu pensamento fragmentos de pensamento alheio, mas apenas insere
aqueles que, como algarismos num número, mudam de valor conforme a posição;
inventa uma coluna vertebral que só a ele pertence e caracteriza, depois procura
o que se lhe pode adaptar sem desarmonia nem contradição.
Faz
como o caracol que se não instala na concha de outro caracol; fabrica-a e
aumenta-a ao mesmo ritmo que se fabrica e aumenta o corpo que a enche; os
eremitas são bichos traiçoeiros. Aprender ideias não tem valor senão quando nos
serve para formar ideias; se apenas as queremos usar não merecemos nem a confiança
nem a consideração de ninguém; o saber é puramente exterior e muito mais
fácil de adquirir do que em geral se supõe. O político que se
apresenta com as minhas ideias políticas, o filósofo que se apresenta com
as minhas ideias filosóficas (palavras de Alcestes), o pedagogo
que se apresenta com as minhas ideias pedagógicas, mas que reconheço não
terem nem a minha política, nem a minha filosofia, nem a minha pedagogia, não
têm, na verdade, as mesmas ideias; usam-nas
somente; são como actores a quem tivesse emprestado os meus fatos e que
jamais confundirei comigo; decerto não subirei ao palco para lhes entregar o
meu país, ou a direcção da minha vida, ou a educação de um moço; posso ainda
admirá-los se representarem bem: mas sei o significado primitivo de
hipócrita». In Glossas
O
drama do intelectual
«O
intelectual, aquele que representa na Humanidade o que ela tem de realmente
humano, gosta mais de quem dele se afasta do que de quem segue sem condições,
disposto a transformar a doutrina que ouve numa ortodoxia opressora; como se
sente diminuído nos ambientes de serralho, anseia pelo que lhe ofereça ocasião
de jogo e se constitua adversário. O campo em frente da sua tenda está aberto a
todos os campeões amigos de justar e quebrar lanças». In Agostinho da Silva, Citações e
Pensamentos, O Homem não Nasceu para Trabalhar, Nasceu para Criar, Casa das
Letras, Alfragide, 2009, ISBN 978-972-46-1922-4.
Cortesia
de Casa das Letras/JDACT