quinta-feira, 16 de outubro de 2014

História do Paraíso. O Jardim das Delícias. Jean Delumeau. «… nos Campos Elísios, mesmo nos confins da terra, os deuses levar-te-ão à morada do louro Radamante, onde a mais doce das vidas é oferecida aos humanos, onde, sem neve, sem Inverno rigoroso, sempre sem chuva…»

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Idade de oiro, Campos Elísios e Ilhas Afortunadas
«Nas mentalidades de outrora um elo quase estrutural unia felicidade e jardim: o que ressalta, neste domínio, das tradições greco-romanas com ás quais se fundiram, pelo menos parcialmente, a partir da era cristã, as evocações bíblicas do pomar do Éden. No interior de um perímetro abençoado, a generosidade da natureza encontrava-se associada à agua, aos eflúvios perfumados, à igualdade primaveril do clima, à ausência de sofrimento, à paz entre os homens e os animais. Três grandes temas favoreceram esta evocação de uma terra ditosa: os da idade de oiro, dos Campos Elísios e das Ilhas Afortunadas, sendo estes três temas ora confundidos, ora separados. No tempo da idade de oiro, assegura Hesíodo em os Trabalhos e os Dias os homens viviam como deuses, com o coração livre de preocupações, à margem e ao abrigo das penas e das misérias: a velhice miserável não pesava sobre eles; mas, de braços e pernas sempre jovens, divertiam-se nos festins, longe de todos os males. Ao morrer, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fecundo produzia sozinho uma abundante e generosa safra e eles, na alegria e na paz, viviam dos seus campos no meio de bens inúmeros. Mais adiante no poema, Hesíodo associa a idade de oiro a uma localização particular. É, lá que eles habitam de coração livre de preocupações, nas ilhas dos Bem-aventurados, à beira dos turbilhões profundos do oceano, heróis afortunados a quem o solo fecundo dá três vezes por ano uma florescente e doce colheita.
Platão evoca, por seu turno, n’O político o período feliz do reinado de cronos. Sob o seu governo não havia nenhuma constituição [...] (os homens) tinham em profusão os frutos das árvores e de toda a vegetação generosa e colhiam-nos sem cultivo numa terra que se lhes oferecia por si mesma. Sem vestes, sem leito, viviam a maior parte do tempo ao ar livre, pois as estações eram tão bem temperadas que não podiam sofrer por causa delas e as suas camas eram fofas, feitas na erva que nascia da terra abundante. O tema da idade do oiro também se encontra muito presente na literatura latina, em Virgílio e Ovídio. O primeiro, por volta de 40 a.C., anuncia, na sua célebre quarta Écloga, que o tempo da felicidade primordial vai voltar num futuro próximo: a terra só dará bons frutos, os animais viverão em paz e os homens trabalharão sem fadiga. O segundo recusa-se a qualquer profecia mas, na esteira de Hesíodo, evoca complacentemente nas suas Metamorfoses o ciclo inicial da história humana:
  • A primeira a nascer foi a idade de oiro, que, sem repressão, sem leis, praticava a boa fé e a virtude. Ignoravam-se os castigos e o temor; não se liam escrito, ameaçadores no bronze, afixados em público; a turba suplicante não tremia na presença do juiz; era inútil um defensor dos fracos para a sua segurança. [...] sem terem necessidade de soldados, as nações passavam, no seio da paz, uma vida de doces lazeres. Também a terra, livre de rendas, sem ser violada pela enxada, nem ferida pela charrua, dava tudo por si; contentados com os alimentos que ela produzia sem coacção, os homens colhiam os frutos do medronheiro, os morangos das montanhas, os cornizolos, as amoras que pendem das silvas espinhosas e as landes tombadas da árvore de Júpiter (o carvalho) de grandes ramadas. A Primavera era eterna e os mansos zéfiros acariciavam com os seus hálitos tépidos as flores nascidas sem sementeira. Pouco tempo depois, a terra que ninguém tinha trabalhado cobria-se de colheitas; os campos, sem cultivo, tornavam-se amarelos sob as pesadas espigas; então rios de leite, rios de néctar corriam aqui e além e a azinheira de folhagem verde destilava o mel louro.
Também os Campos Elísios se tornaram uma morada encantadora. No canto IV da Odisseia, Proteu anuncia a Menelau: nos Campos Elísios, mesmo nos confins da terra, os deuses levar-te-ão à morada do louro Radamante, onde a mais doce das vidas é oferecida aos humanos, onde, sem neve, sem Inverno rigoroso, sempre sem chuva, se sentem apenas zéfiros, cujos risos sibilantes sobem do oceano para refrescar os humanos. Na segunda Olímpica, escrita em 476 a. C., Píndaro situa nas Ilhas Afortunadas a felicidade dos justos, que passaram por três reencarnações terrestres e saíram vitoriosos da prova do julgamento. São então recompensados por uma felicidade eterna nestes lugares refrescados pela brisa marinha e de onde foram banidos o sofrimento e o medo: Ali resplandecem flores de ouro, umas na terra, de ramagens de árvores magníficas, outras alimentadas pelas águas; delas tecem grinaldas para os braços; tecem coroas debaixo da equitativa vigilância de Radamente». In Jean Delumeau, 1992, Uma História do Paraíso, O Jardim das Delícias, Terramar Editores, Lisboa, 1994, ISBN 972-710-059-7.

Cortesia de Terramar/JDACT