Idade de oiro, Campos Elísios e Ilhas Afortunadas
«Nas
mentalidades de outrora um elo quase estrutural unia felicidade e jardim: o que
ressalta, neste domínio, das tradições greco-romanas com ás quais se fundiram,
pelo menos parcialmente, a partir da era cristã, as evocações bíblicas do pomar
do Éden. No interior de um perímetro abençoado, a generosidade da natureza
encontrava-se associada à agua, aos eflúvios perfumados, à igualdade primaveril
do clima, à ausência de sofrimento, à paz entre os homens e os animais. Três
grandes temas favoreceram esta evocação de uma terra ditosa: os da idade de
oiro, dos Campos Elísios e das Ilhas Afortunadas, sendo estes três temas
ora confundidos, ora separados. No tempo da idade de oiro, assegura Hesíodo em
os Trabalhos
e os Dias os homens viviam como
deuses, com o coração livre de preocupações, à margem e ao abrigo das penas e
das misérias: a velhice miserável não pesava sobre eles; mas, de braços e
pernas sempre jovens, divertiam-se nos festins, longe de todos os males. Ao
morrer, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo
fecundo produzia sozinho uma abundante e generosa safra e eles, na alegria e na
paz, viviam dos seus campos no meio de bens inúmeros. Mais adiante no
poema, Hesíodo associa a idade de oiro a uma localização particular. É, lá que eles habitam de coração livre de
preocupações, nas ilhas dos Bem-aventurados, à beira dos turbilhões profundos
do oceano, heróis afortunados a quem o solo fecundo dá três vezes por ano uma
florescente e doce colheita.
Platão
evoca, por seu turno, n’O político o período feliz do reinado
de cronos. Sob o seu governo não havia nenhuma constituição [...] (os homens)
tinham em profusão os frutos das árvores e de toda a vegetação generosa e
colhiam-nos sem cultivo numa terra que se lhes oferecia por si mesma. Sem vestes,
sem leito, viviam a maior parte do tempo ao ar livre, pois as estações eram tão
bem temperadas que não podiam sofrer por causa delas e as suas camas eram
fofas, feitas na erva que nascia da terra abundante. O tema da idade do oiro também
se encontra muito presente na literatura latina, em Virgílio e Ovídio. O
primeiro, por volta de 40 a.C., anuncia, na sua célebre quarta Écloga,
que o tempo da felicidade primordial vai voltar num futuro próximo: a terra só
dará bons frutos, os animais viverão em paz e os homens trabalharão sem fadiga.
O segundo recusa-se a qualquer profecia mas, na esteira de Hesíodo, evoca
complacentemente nas suas Metamorfoses o ciclo inicial da
história humana:
- A primeira a nascer foi a idade de oiro, que, sem repressão, sem leis, praticava a boa fé e a virtude. Ignoravam-se os castigos e o temor; não se liam escrito, ameaçadores no bronze, afixados em público; a turba suplicante não tremia na presença do juiz; era inútil um defensor dos fracos para a sua segurança. [...] sem terem necessidade de soldados, as nações passavam, no seio da paz, uma vida de doces lazeres. Também a terra, livre de rendas, sem ser violada pela enxada, nem ferida pela charrua, dava tudo por si; contentados com os alimentos que ela produzia sem coacção, os homens colhiam os frutos do medronheiro, os morangos das montanhas, os cornizolos, as amoras que pendem das silvas espinhosas e as landes tombadas da árvore de Júpiter (o carvalho) de grandes ramadas. A Primavera era eterna e os mansos zéfiros acariciavam com os seus hálitos tépidos as flores nascidas sem sementeira. Pouco tempo depois, a terra que ninguém tinha trabalhado cobria-se de colheitas; os campos, sem cultivo, tornavam-se amarelos sob as pesadas espigas; então rios de leite, rios de néctar corriam aqui e além e a azinheira de folhagem verde destilava o mel louro.
Também
os Campos Elísios se tornaram uma morada encantadora. No canto IV da Odisseia,
Proteu anuncia a Menelau: nos Campos
Elísios, mesmo nos confins da terra, os deuses levar-te-ão à morada do louro Radamante,
onde a mais doce das vidas é oferecida aos humanos, onde, sem neve, sem Inverno
rigoroso, sempre sem chuva, se sentem apenas zéfiros, cujos risos sibilantes
sobem do oceano para refrescar os humanos. Na segunda Olímpica, escrita em 476
a. C., Píndaro situa nas Ilhas Afortunadas
a felicidade dos justos, que passaram por três reencarnações terrestres e
saíram vitoriosos da prova do julgamento. São então recompensados por uma
felicidade eterna nestes lugares refrescados pela brisa marinha e de onde foram
banidos o sofrimento e o medo: Ali resplandecem flores de ouro, umas na terra,
de ramagens de árvores magníficas, outras alimentadas pelas águas; delas tecem
grinaldas para os braços; tecem coroas debaixo da equitativa vigilância de
Radamente». In Jean
Delumeau, 1992, Uma História do Paraíso, O Jardim das Delícias, Terramar
Editores, Lisboa, 1994, ISBN 972-710-059-7.
Cortesia de
Terramar/JDACT