1988. New Jersey Fora de Horas
«É sexta-feira, são 9 horas da manhã, isto é, da madrugada, dead line para os textos da Última,
e o cronista está sem crónica e sem assunto. E sem paciência. Do lado, como
bombeiros o mais voluntários possível, acorrem os amigos: ouviste o que disse o Cavaco sobre a popularidade do Governo?;
e sobre a greve geral?; ó Pina, escreve sobre o pãozinho quente e
o leitinho de Cavaco no dia da greve geral; toma a lista dos enganos de Cavaco,
ele que nunca se engana e raramente tem dúvidas (ou que nunca tem dúvidas e raramente se engana?); e a Leonor Beleza?, escreve sobre a
Leonor Beleza; olha: conta aquela do polícia sinaleiro de Setúbal...
A solidariedade dos amigos é sempre uma coisa bonita, sobretudo para um
cronista sem crónica. Mas resolve poucas coisas; uma ideia, mas onde diabo pode
um homem ir buscar uma ideia às 9 horas de sexta-feira, ajudaria. Nem seria
preciso uma boa ideia, bastaria uma ideia assim-assim, mas Cavaco Silva, mas Leonor
Beleza, são péssimas ideias, mesmo para quem não tem melhores. A
única ideia que ocorre insistentemente ao cronista é voltar para a cama, mas,
apesar de serem 9 horas, o cronista está lúcido para perceber que essa ideia
não resolveria a crónica.
Nunca nenhuma cabeça esteve tão vazia de ideias como a do cronista,
sentado diante da máquina de escrever, acendendo cigarros, rodeado de amigos
por todos os lados menos pelo da crónica. Nesta altura converter-se-ia a
qualquer religião, assinaria letras e abaixo-assinados em branco, prometeria
qualquer coisa (até ler o Correio da
Manhã!), em troca de um bom assunto, se não fosse pedir muito já pronto para
ir para a fotocomposição! O Pacheco Pereira é um bom assunto, mas nunca às 9
horas da manhã; Maldonado Gonelha e Ângelo Correia são também sempre
cronicáveis, mas o escárnio e o maldizer, que é o género que lhes vai,
exigem uma preparação física especial, duas ou três semanas antes da crónica, e
um estágio de vários dias em Eça ou em
Alphonse Allais, e o cronista nos últimos tempos só tem lido A Bola e comunicados sindicais...
Rubem Braga, uma vez, escapou-se à servidão semanal da crónica contando
uma que já tinha contado. Argumentou que a Sétima
de Beethoven também não foi feita para ser ouvida uma só vez, nem As meninas de Velázquez ou as Galas
todas de Dalí para serem vistas uma só vez. Mas este cronista não tem, sequer, a
megalomania de Rubem Braga, nem outra mania capaz de lhe valer numa emergência
como a presente. Está sentado à máquina de escrever, a escrever à máquina, na
esperança de que a crónica se escreva a si mesma. Já lhe tem acontecido...
Quando, subitamente, o Espírito Santo dos jornalistas lhe segreda ao
ouvido que a falta de assunto pode ser, talvez, um bom assunto, ou ao menos um
assunto assim-assim, bastante para descarregar o problemático defunto desta
semana. E como aquele náufrago de Carl Sandburg que, agarrado a uma tábua
durante dias e noites, deu finalmente à costa e perguntou: Que terra é esta?, acrescentando quando de terra lhe gritaram que
era New Jersey: sigo mais uns dias, até
um pouco mais abaixo!, o cronista agarrou-se à ideia com todas as forças, à
espera que ela chegasse para o levar até ao fim das duzentas linhas da praxe. Com
as dificuldades de que o leitor é testemunha, consegui chegar até aqui; mas,
contrariamente ao herói americano, vai ficar-se por New Jersey. Para a semana,
se puder, irá um pouco mais longe. Mas de barco». In Manuel António Pina, JN, 9 de Abril
de 1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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