quinta-feira, 19 de junho de 2014

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «Que terra é esta?, acrescentando quando de terra lhe gritaram que era New Jersey: sigo mais uns dias, até um pouco mais abaixo! O cronista agarrou-se à ideia com todas as forças, à espera que ela chegasse para o levar até ao fim das duzentas linhas da praxe»

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1988. New Jersey Fora de Horas
«É sexta-feira, são 9 horas da manhã, isto é, da madrugada, dead line para os textos da Última, e o cronista está sem crónica e sem assunto. E sem paciência. Do lado, como bombeiros o mais voluntários possível, acorrem os amigos: ouviste o que disse o Cavaco sobre a popularidade do Governo?; e sobre a greve geral?; ó Pina, escreve sobre o pãozinho quente e o leitinho de Cavaco no dia da greve geral; toma a lista dos enganos de Cavaco, ele que nunca se engana e raramente tem dúvidas (ou que nunca tem dúvidas e raramente se engana?); e a Leonor Beleza?, escreve sobre a Leonor Beleza; olha: conta aquela do polícia sinaleiro de Setúbal...
A solidariedade dos amigos é sempre uma coisa bonita, sobretudo para um cronista sem crónica. Mas resolve poucas coisas; uma ideia, mas onde diabo pode um homem ir buscar uma ideia às 9 horas de sexta-feira, ajudaria. Nem seria preciso uma boa ideia, bastaria uma ideia assim-assim, mas Cavaco Silva, mas Leonor Beleza, são péssimas ideias, mesmo para quem não tem melhores. A única ideia que ocorre insistentemente ao cronista é voltar para a cama, mas, apesar de serem 9 horas, o cronista está lúcido para perceber que essa ideia não resolveria a crónica.
Nunca nenhuma cabeça esteve tão vazia de ideias como a do cronista, sentado diante da máquina de escrever, acendendo cigarros, rodeado de amigos por todos os lados menos pelo da crónica. Nesta altura converter-se-ia a qualquer religião, assinaria letras e abaixo-assinados em branco, prometeria qualquer coisa (até ler o Correio da Manhã!), em troca de um bom assunto, se não fosse pedir muito já pronto para ir para a fotocomposição! O Pacheco Pereira é um bom assunto, mas nunca às 9 horas da manhã; Maldonado Gonelha e Ângelo Correia são também sempre cronicáveis, mas o escárnio e o maldizer, que é o género que lhes vai, exigem uma preparação física especial, duas ou três semanas antes da crónica, e um estágio de vários dias em Eça ou em Alphonse Allais, e o cronista nos últimos tempos só tem lido A Bola e comunicados sindicais...
Rubem Braga, uma vez, escapou-se à servidão semanal da crónica contando uma que já tinha contado. Argumentou que a Sétima de Beethoven também não foi feita para ser ouvida uma só vez, nem As meninas de Velázquez ou as Galas todas de Dalí para serem vistas uma só vez. Mas este cronista não tem, sequer, a megalomania de Rubem Braga, nem outra mania capaz de lhe valer numa emergência como a presente. Está sentado à máquina de escrever, a escrever à máquina, na esperança de que a crónica se escreva a si mesma. Já lhe tem acontecido...
Quando, subitamente, o Espírito Santo dos jornalistas lhe segreda ao ouvido que a falta de assunto pode ser, talvez, um bom assunto, ou ao menos um assunto assim-assim, bastante para descarregar o problemático defunto desta semana. E como aquele náufrago de Carl Sandburg que, agarrado a uma tábua durante dias e noites, deu finalmente à costa e perguntou: Que terra é esta?, acrescentando quando de terra lhe gritaram que era New Jersey: sigo mais uns dias, até um pouco mais abaixo!, o cronista agarrou-se à ideia com todas as forças, à espera que ela chegasse para o levar até ao fim das duzentas linhas da praxe. Com as dificuldades de que o leitor é testemunha, consegui chegar até aqui; mas, contrariamente ao herói americano, vai ficar-se por New Jersey. Para a semana, se puder, irá um pouco mais longe. Mas de barco». In Manuel António Pina, JN, 9 de Abril de 1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AAlvim/JDACT