O jovem
«(…) Certamente por isso, a doutrina defendida pelo Bispo de Silves,
considerando o chefe político como príncipe do mundo, que deve encaminhar os
súbditos para a beatitude da Pátria Celeste: o seu governo temporal tem justificação na finalidade que o transcende. É
por isso mesmo que a Igreja, estrutura espiritual, símbolo da transcendência,
terá legitimidade para impor aos estados normas de conduta, não foi
frontalmente contestada. A sua prática, visível no agir pontual de alguns
monarcas, como por exemplo na criação do Beneplácito
Régio com Pedro ou, a níveí mais vasto, nos vários confrontos entre o
império e o papado, não foi substituida oficialmente por uma outra concepção
que, legalmente, independentizasse a pessoa do monarca, no seu agir, não só da autoridade
eclesiástica, como também desse outro espectro que fora a
autoridade senhorial. A busca
de suporte teórico para enfrentar as latentes ameaças que daí poderiam advir,
parece-nos ter sido particularmente perseguida pelo jovem príncipe, consciente
de que na política o problema primordìal
é o que se refere ao poder do estado. Autonomizar esse poder foi o sonho de João
II.
Que doutrinas políticas bebeu?
Certamente a escola italiana, não apenas pelos manuais, mas também pelo
conhecimento directo do modo como agiram os Príncipes coevos, terá tido em si
forte influência. Igualmente, a actuação de Luis XI que fez da França um Estado
poderoso, a caminho da centralízação, foi seguida atentamente por João.
A par disso é provável que tivesse acesso a algumas obras literárias e
reflectisse, à sua maneira, a teoria da mediação
do povo. Essa teoria orientara já as cortes que aclamaram o Mestre de
Avis como Rei de Portugal; ora se nela a Dinastia de Avis tinha assentado as
suas bases, esta teoria tornou-se passiva de interpretação pelo Príncipe. Por
outro lado, como diz Martim de Albuquerque, a mesma encontra-se acolhida
na Virtuosa Benfeitoria. Aí se
reconhece, de acordo com o ensinamento de S. Paulo, a proveniência divina do poder
(..) e a necessidade de consentimento do povo. Precisamente esta ideia pode ter
sido interpretada pelo jovem pelo realce dado ao binómio povo-rei para si tão
importante. Daí o seu projecto de um governo para o povo, mas feito por um
soberano que era muyto ceremonial, e as
cousas de seu estado sempre quis que lhe fizessem em todolos tempos com grande
veneração. Havia, pois, uma identificação do rei como defensor do povo,
mas, em simultâneo, as distâncias estavam muito bem marcadas. Esta evidência
excluia quaisquer outros poderes satélite, destacando a figura do monarca como
senhor único, mas criando-lhe ao mesmo tempo a obrigação de resposta ao povo
que governava e por quem se devia considerar responsável. Essa convicção explica
ainda a frase Por tua Lei e por tua
Grei que, quando rei, João II juntou à sua divisa: o pelicano que, ferindo o peito, garantia
o sustento dos filhos. Este modo de agir prova que o rei não liderava
ainda um estado absoluto, mas se identificava com uma autoridade paternalista, o que .não o impedia de,
baseando-se no povo, estabelecer uma prática política inteiramente inovadora na
época. Esta concepção gerada intelectualmente pelo Príncipe João encontrou expressão prática na sua actuação enquanto
rei. Foi certamente na leitura dessa prática que Diogo Lopes Rebelo se inspirou
para escrever a obra em que realçou as virtudes que o rei deve ter, exaltando-o
como senhor absoluto.
Afonso V e o seu herdeiro
O juízo de valor que Garcia de Resende fez sobre a figura do jovem João não pode hoje
significar a existência de uma pessoa cheia de virtudes e completamente isenta
de defeitos; mas entende-se que Resende assim o tivesse visto. O seu livro é a
expressão de um cortesão saudoso que,
nomeado por João II moço de câmara e, depois, de escrivaninha, experimentou, na
intimidade que o cargo lhe proporcionava, uma imensa amizade pelo monarca;
também João II seria seu amigo e certamente lhe faria algumas confidências.
Essa proximidade justifica que fossem tão fortes
os laços que o prendiam ao Príncipe Perfeito, numa grata lembrança que o
acompanhou ao longo da vida, que nessa figura veio a personificar o ideal do bom
rei. Escrevendo bastantes anos depois da morte do seu monarca, este
autor imaginou-o como um todo harmonioso; embora o não
tivesse conhecido na juventude, já que Resende era 15 anos mais novo, idealizou
nele a figura do jovem modelo que assi
como crecia no corpo, e hidade, crecião nelle virtudes, bons costumes, bom
ensino, e boas manhas em tanto crecimento, que sendo muyto moço veo logo a
ganhar tanta auctoridade com os povos, com os nobres, e com El Rey seu pay, que
não fazia Conselho, nem cousa grande, em que o não metesse, e tomasse seu parecer».
In
Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da
Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa,
1991, ISBN 972-33-0789-8.
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