Leituras
de Camões no Tempo dos Filipes
«(…)
Aí regressam versos densos de erotismo, como a descrição de Vénus no Canto II;
aí regressam os passos obliterados ou velados por melindre político, no Canto
IV, como o exalçamento heróico de Nuno Álvares Pereira, açoute de soberbos castelhanos, ou o anátema sobre seus irmãos arrenegados. Ora, regressam, não clandestinamente,
mas em pleno dia: essas edições são dedicadas a membros do Santo Ofício (ao
Doutor Rodrigo d’Acunha, Deputado do S. Ofício [maldito], em 1609 e 1612,
e Inquisidor Apostólico do Santo Ofício [maldito] de Lisboa, em
1613; Ao llustríssimo, e Reverendíssimo senhor João da Silva, Capelão Mor de
sua Majestade, Ordinário da Capela, Casa Real, e toda a Corte,em1633) ou a personagens
gradas da hierarquia social em 1626, A João d’Almeida, do Conselho del Rei nosso
Senhor; em 1631, a Duarte, filho II do Senhor Teodósio de Bargança II deste
nome).
Perguntar-se-á: que leitura se fez então d’Os
Lusíadas? Que espírito se captou
na sua letra rediviva? Fértil campo de busca acha-se nos comentários,
que visavam ser a declaração verdadeira do texto, topologicamente, passo a
passo, ou, com audácia hermenêutica, edificando uma compreensão global do
poema. O número de comentários a Os Lusíadas, no tempo dos Filipes,
não é despiciendo, como não é irrelevante o estatuto de seus autores. O pe.
Pedro Mariz não consentiu que pela morte do pe. Manuel Correia tudo
naufragasse, e, met[endo] a mão em sua sementeira, publicou em 1613 Os Lusíadas [...] Commentados; sorte
madrasta tiveram os escólios do Chantre Manuel Severim Faria ou do pe. Luís da
Silva Brito, dos quais resta táo-só vaga notícia. O crúzio Marcos de Sáo Lourenço
empreendeu também o comentário d’Os Lusíadas, até.pelo menos ao Canto
III, e tê-lo-á redigido ou burilado pela década de 30, altura a que remontará
igualmente o extenso labor do pe. Manuel Pires Almeida.
Eclesiásticos,
todos eles, enfrentaram, cada um a seu modo, a epopeia de Camões. Cada urn a seu
modo e até competindo entre si: Manuel Correia-Pedro de Mariz (os dois
nomes são inseparáveis, pois nunca as suas vozes exactamente se definem n’Os Lusíados [...] Commentados)
desdenharam das frágeis notas inclusas nas edições de 1584 e l591; Marcos
menosprezou o trabalho de Manuel Correia-Pedro de Mariz. Qranto a Manuel
Pires Almeida, como se não trilhasse estrada batida, ignorando os demais, quis muito
inserir a épica camoniana no contexto poético. E no entanto, acima das diferenças,
mais flagrantes ou mais discretas, e acima de alguma rivalidade, detectam-se
linhas de comunhão: a leitura da épica atrai uma consciência identitária, e os
comentadores atiçam um sentido de fronteira e de autonomia relativamente a Espanha
(a que preferem chamar, não sem ásperas conotações, Castela), alimentando a
memória de conflitos e disputas.
Escusado
será dizer: Os Lusíadas prestavam-se a esta leitura. As escolhas de Camões
(diferentes das de um Jerónimo Corte-Real) facilitaram esse encontro apaixonado
com o poema. Porque n’Os Lusíadas é de Portugal e da sua
história que se trata. E porque neles o poeta não cala nem fúria nem mágoa nem
decepção, entregando-se a uma exuberante euforia ou mergulhando em desânimo,
como se julgava típico do homem de génio melancólico (um modelo cultural em
voga) e como se julgava típico de experiências de crise, que aos olhos dos
comentadores se iam revelando endémicas e os estimulavam a cotejar o passado e
o presente. Assim, o elogio da qualidade estética do poema entrelaça-se com o
elogio de Camões como poeta português, parte de um património de que
Manuel Correia, Pedro de Mariz, Marcos de S. Lourenço, Manuel Pires de Almeida
não abdicam. Com Os Lusíadas, revisitam a História e contemplam o país, sendo
Marcos de S. Lourenço aquele que prima pelo desassombro. Observe-se como das
estrofes preambulares faz pretexto para um lamento:
Pronostica
Camões muitas prosperidades a El Rei Sebastião [...]. Mas por seus pecados e
nossos saiu Camões tão bom profeta comoJoáo Mena nos bens que pronosticou a
Ávaro Luna, pois a este lhe cortaram a cabeça daí a breve tempo, e a el Rei Sebastião
sempre Portugal chorará sem remédio, porque com sua destruição perdeu a lusitana
antiga liberdade que Camões dava por segura com sua vida. Aqui havia muito que
dizer e muito mais que chorar, mas deixaremos de o fazer porque como diz Tito
Lívio Lachrimae nec tunc gratae cum forte sint necessariae, as
lágrimas nem então agradam quando não se escusam.
In
Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII,
Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.
Cortesia
da FCGulbenkian/JDACT