Leituras
de Camões no Tempo dos Filipes
«(…)
Precisamos de coligir alguns dados: recapitulados ou dispostos em cadeia,
iluminam-se mutuamente e ajudam a pensar. Desde logo, fala por si o dinamismo
de impressores e livreiros: a abundância da oferta patenteia a intensidade da
procura. Em Portugal, depois da editio
princeps d’Os Lusíadas (1572), vieram as de 1584, 1591,
1597, 1609, 1612, 1613, 1626, 1631, 1633. A estas somou-se a publicaçáo da lírica (1595, 1598, 1607, 1614, 1616,
1621, 1629, 1632),a de textos de
teatro (1587, 1615, 1616) e a da epistolografia,
com as duas cartas em prosa divulgadas a partir das Rimas de 1598 e o
dramático fragmento transcrito na dedicatória d’Os Lusíadas saídos dos
prelos em 1626 (verão todos que fui tão afeiçoado a minha pátria, que não só me
contentei de morrer nela, mas de morrer com ela). O que impressiona não é
apenas o número e o ritmo da actividade tipográfica, que abranda cerca de 1630,
verosimilmente por saturação do mercado. Além da quantidade e da frequência das
edições, significativo, não menos, é o que nelas se integra e o que delas se
exclui. À margem da frenética caça de novidades cultivada em torno de Camões,
o corpus das cartas foi o único a
permanecer magro e estável, numa contenção que só um cuidado de decoro pode
explicar. Missivas desbragadas, com relatos da estúrdia lisboeta, vieram a lume
no século XX, não antes. E nem estariam perdidas. Tê-las-á votado ao ostracismo
um consensual e duradouro propósito de não ferir a dignidade do ícone que um
título cedo consagrara: o príncipe dos
poetas heroicos Portugueses.
Eloquente
é também a materialidade dos livros, marcados, alguns, pela pressa ou pela
ânsia de tudo rentabilizar na sua execução. Foi com Os Lusíadas de Camões
que em 1626 a oficina Craesbeeck
inaugurou, em Portugal, a publicaçáo de obras num formato diminuto, em letra pequena que – vincava Franco
Barreto, com razão se deve chamar sua,
pois só para ele se mandou vir de fora a este Reino. Decerto, embora sem
semelhante requinte técnico e estético, não era a primeira vez que se
estampavam volumes de dimensões reduzidas. No âmbito religioso, as escalas
pequenas constituíam uma solução comum, justificada em pragmáticos cálculos
como os que Baltasar Estaço formulou (porque
valha menos e se comunique mais) ou na captatio benevolentiae de prólogos
como o do Manual de diversas oraciones y
spirituales ejercicios, sacado por la mayor parte del libro llamado Guía dc pecadores,
que compuso el R. P Fray Luís de Granada (1557): Recibe pues,
cristiano lector, com benignos ojos este pequeño presente, que cuanto es más
pequeño, tanto te será más ligero de traer y más fácil de comprar por pobre que
seas. Na dedicatória d’Os Lusíadas, porém, tão prosaico
argumento não foi repetido.
Dirigindo-se
a João de Almeida, o que Lourenço Craesbeeck salientou foi o prodígio cuja
fruição proporcionava: Reduzido a tão
pequeno corpo, ofereço a v.m. o mor gigante do Parnaso, e assi como em um pequeno
mapa se compreende toda a máquina do mundo, assi neste breviado volume se inclú
toda a perfeição da poesia [...]. Diamante é, encarecia: o qual por meio desta impressáo resumi a
tão pequeno espaço, porque não é justo que os cnriosos se contentem só de o
lerem, mas de o trazerem sempre consigo. Um livro precioso e de todas
as horas, em suma. Craesbeeck não se enganava, porque a curto intervalo (1631,
1633) retomou esta receita, e a reedição é habitual consequência do
êxito. Em síntese: houve muitas edições camonianas, promovendo o autor e sua
obra; houve até o rasgo e a ambiçáo de difundir os enormes Lusíadas em dilectos e
portáteis livrinhos de bolso; houve o cuidado de proteger a imagem gloriosa do
Poeta. E houve mais: entre 1584 e 1597 a epopeia vergou ao peso
da censura; a partir daí, houve meios e licença para que circulasse de novo numa
versão fiel àquela que, sob os auspícios do proprio Luís Vaz, brilhara impressa
em 1572.
Se
as edições de 1584 e de 1591, com seus múltiplos cortes, seus
desajeitados ajustes e suas notas por vezes medíocres, foram adaptações ad
usum delphini, concebidas para uma utilização pedagógica norteada pela
Companhia de Jesus, convirá não as rotular de meros espelhos de escrúpulos,
pois de acordo com esta hipótese valeriam como instrumentos de aproximação
entre um público jovem e a épica camoniana. Fosse como fosse, não se apagara a
consciência de que aquele não era o texto do autor. E certo é que um processo de
recuperação d’Os Lusíadas se iniciou em 1597
e se cumpriu na edição de 1609, que
resgatou, excepto pontuais variantes, a forma da princeps». In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações
Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras,
2011.
Cortesia
da FCGulbenkian/JDACT