terça-feira, 20 de novembro de 2012

Rodas Dentadas. Nuno Crato. «O que mais surpreende no mecanismo de Antiquítera é a precisão com que foi obtido o rácio entre períodos lunares e períodos solares. A desmultiplicação foi conseguida por seis rodas dentadas, nas relações 64 / 38 x 48 / 24 x 127 / 32, que obtêm o rácio 254 / 19 = 13,36842... Um resultado certo até à terceira casa decimal!»

Aparelho de Antiquítera
jdact e cortesia de wikipedia

Rodas Dentadas
«Quem observar o interior de um relógio mecânico não pode deixar de se maravilhar com as numerosas rodas dentadas que se encontram no aparelho. Essas rodas desmultiplicam o movimento, assegurando que os ponteiros rodem à velocidade certa. Transformam as oscilações da fonte de energia interna, habitualmente com período de um segundo, em ciclos de uma hora para o ponteiro dos minutos e de meio dia para o das horas.
Para conseguir esta conversão, poder-se-ia construir uma roda com um dente apenas e acoplá-la à fonte, que faria rodar essa roda uma vez por segundo. Depois podia-se encaixar essa roda numa outra com 3600 dentes. Cada vez que a primeira fizesse uma rotação completa, a segunda avançaria um dos seus 3600 dentes. Após 3600 rotações da primeira roda, ou seja, após uma hora, a segunda roda faria uma rotação completa. Essa segunda peça poderia pois estar acoplada ao ponteiro dos minutos.
As rodas dentadas apenas com um dente, no entanto, seriam muito instáveis e frágeis, tal como as rodas de 3600 dentes seriam demasiado grandes. Os construtores preferem utilizar uma sequência de rodas que transmitem o movimento inicial de uma para a seguinte, reduzindo sucessivamente os períodos de rotação. Montam-se duas rodas dentadas em cada eixo, de forma que um eixo recebe o movimento de uma roda e arrasta a outra, que engata numa terceira, num segundo eixo, e assim sucessivamente. A desmultiplicação final resulta do produto das desmultiplicações efectuadas em cada passo. Para obter o pretendido rácio 3600 / 1, pode haver uma série de passos, por exemplo, 36 / 10 x 50 / 10 x 20 / 5 x 10 / 5 x 25 / 10 x 100 / 10, em que o primeiro número de cada fracção representa o número de dentes de uma roda e o segundo o número de dentes da roda de outro eixo com que a primeira engata.
Como é óbvio, há muitas soluções possíveis. A arte está em construir uma sequência óptima de rodas dentadas, nem muito grandes nem muito pequenas, que obtenha a desmultiplicação pretendida.
No século XVIII encontraram-se algoritmos matemáticos para resolver iterativamente o problema. No essencial, esses algoritmos factorizam o numerador e o denominador da fracção pretendida, isto é, escrevem cada um dos dois números como um produto de números primos. Assim, por exemplo, se quisermos obter o rácio 28 / 45, escrevemo-lo (2 x 2 x 7) / (3 x 3 x 5) e procuramos diversos agrupamentos. Neste caso, (2 x 7) / 3 x 3) x 2 / 5, ou seja, 14 / 9 x 2 / 5, é uma das soluções possíveis para quem quiser usar quatro rodas dentadas.
O problema torna-se mais complicado quando é inviável ou impossível obter o rácio exacto e apenas se podem obter aproximações. Se o rácio for por exemplo, 997 / 1999, tanto o numerador como o denominador são números primos e a solução exacta mais simples consiste na construção de uma roda com 997 dentes e de outra com 1999, o que não parece viável. Mas a aproximação 1 / 2 ou 10 / 20, por exemplo, é bastante razoável neste caso, pois 997 / 1999 = 0,498... E sabe-se que qualquer que seja o rácio pretendido é sempre possível aproximá-lo com a precisão que se quiser, usando sistemas de rodas dentadas mais simples. O problema, no entanto, pode ser muito trabalhoso e só no século XX apareceram algoritmos eficientes Para obter sistemas que dêem boas aproximações.


Cortesia de wikipedia e jdact

Até há algumas décadas pensava-se que o domínio de todas estas técnicas só tinha sido conseguido muito tarde. Mas, em 1901, a descoberta fortuita de um mecanismo, no fundo do mar, perto da ilha grega de Antiquítera, veio mudar essa ideia. O aparelho que se encontrou estava muito deteriorado e foram necessários muitos estudos para o interpretar. Em 1974, finalmente, o historiador da ciência Derek De Solla Price (1922-1983), de Yale, conseguiu perceber o seu funcionamento. Verificou que era nada mais nada menos do que uma máquina destinada a reproduzir o movimento aparente do Sol e da Lua, incluindo as mudanças de fase do nosso satélite.
Hoje esses aparelhos chamam-se habitualmente planetários. Rareiam, pois são peças mecânicas muito custosas. No seu cerne está precisamente um sistema de rodas dentadas que permite mover as esferas que representam cada astro. Em Lisboa, quem quiser ver um destes aparelhos pode fazê--lo no Planetário Gulbenkian.
O que mais surpreende no mecanismo de Antiquítera é a precisão com que foi obtido o rácio entre períodos lunares e períodos solares. A desmultiplicação foi conseguida por seis rodas dentadas, nas relações 64 / 38 x 48 / 24 x 127 / 32, que obtêm o rácio 254 / 19 = 13,36842... Um resultado certo até à terceira casa decimal!
Até há pouco, o aparelho de Antiquítera maravilhava apenas os matemáticos, os astrónomos e os historiadores. Recentemente, John Gleave, um artífice inglês reconstruiu o instrumento antigo. Funciona e obtém a precisão desejada. Quem seria o misterioso sábio grego que há dois mil anos construiu o original?»

In Nuno Crato, A Matemática das Coisas, Gradiva, Temas de Matemática, 2008, ISBN 978-989-616-241-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT