terça-feira, 20 de novembro de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo (1945-2001). «Meta pelas "carreiras de baixo", veja ali aquela escultura branca, é de Pedro V, coitado, reinou pouco, daqui morreu, informava-me o meu narrador; vire agora à direita, para passarmos em frente daquele edifício, de portas de ferro forjado, obra de arte…»


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«Vê lá, no alto, aquela capelinha votiva, caiada de branco, com o seu miradouro de arrabalde? É Nossa Senhora da Penha, a contemplar, ao longe, Marvão, e a olhar, aqui mais para perto, para esta Vila, que lhe fica subalterna, e reverente se deita, de rendida, à sua padroeira, a quem oferece anualmente as suas gaudientes libações, rezando-lhe sempre fervidamente. Àquele ancoradouro alto vão os forasteiros e os que da vida têm subida nota, tomados da oferta generosa dos panoramas mais perfeitos e acabados.
De lá, queria o Alves dos Reis, famoso licenciado em falsidades e burlas ou em qualquer faculdade de mentiras, montar teleférico, que em constantes vaivéns traria a montanha à Vila e vice-versa, a ela trazendo vindas e levando idas, dizia-me o Garcia, parado e com ar de quem dá novidades. Eu aditava aquelas informações e mastigava-as,como mais valias.
Meta pelas "carreiras de baixo", veja ali aquela escultura branca, é de Pedro V, coitado, reinou pouco, daqui morreu, informava-me o meu narrador; vire agora à direita, para passarmos em frente daquele edifício, de portas de ferro forjado, obra de arte, a quem o fogo e a bigorna deram forma e desenho para séculos. Sabe, é a Câmara de Castelo de Vide, ousadamente enfrentada por aquele enorme volume, que a arquitectura religiosa ali construiu, em luta de poderes e de louros, teimosas apostas entre profanos e clérigos.
Repare ali, na Câmara, naquela torre civil, onde está o sino, que, para além de dar as ave-marias do entardecer, cantadas pela pintura de Milet, anuncia ,ainda hoje, de quinze em quinze dias, o toque do recolher, lembrando aos residentes que estivessem fora que os gonzos das portas da Vila iam rodar, encerrando-a para entradas e saídas. Saboreei ali mesmo o ressoar da história, a entidade tempo, os seus elos e as suas cadeias.
Repare aqui nesta casa, e eu freei todos os movimentos, para a atenção ser concentrada, aguçando a minha curiosidade, para dar resposta à diligência por ele solicitada. Era uma casa de construção granítica, neo-clássica, onde um grande vulto da nossa história do século XIX tinha nascido e vivido, Mouzinho da Silveira, juiz que foi de Marvão.
Então lembrei-me de quando, em tertúlia séria, adoptei, como pseudónimo,o nome daquele lutador e combatente liberal, acólito de Pedro IV, e que com ele vem da Ilha Terceira para a praia de Pampelido, para depois entrar a cavalo, atrás do seu rei, pelas portas do Carvalhido, sendo vitoriado pelas gentes do Porto e de Cedofeita.
Meditei no esquecimento dos cronistas, que deixaram ficar de fora dos seus livros de notas essa enorme figura, um dos maiores estadistas dos últimos séculos, o autor da última grande reforma do Estado e da sua administração, não narrando, para a posteridade, a sua desmedida coragem política e a sua incomparável capacidade legislativa, fazedor que foi, ou que queria ser, de um Estado moderno e civilizado, à maneira dos demais europeus.
Por via da minha profissão, tive acesso ao seu testamento cerrado, lavrado de azedumes e de mordências, escorregadio das dores das feridas da vida, de quem os caudatários, interesseiros e ocasionais, se afastaram, deixando-o só, pedernido de tantas tristezas, que lhe ditaram o desabafo, vertido para aquele documento de última vontade, de que aquilo que mais pretendia era que, ao menos, o seu filho não se envergonhasse do nome do pai.
De ressentimentos maiores que o seu tamanho, pediu préstimos ao notário, para que lhe desse voz, para além da sua morte, decretando que queria ser sepultado na 'Margem', obscura localidade lá para as bandas de Abrantes, não fosse algum inquisidor de restolho tentar localizá-lo e mandar queimar o que de si restava.
Em silêncio fúnebre, o Garcia conduziu-me ao Jardim pequeno para me mostrar, na eternidade do bronze, o seu busto, nascido da subscrição da Vila, que não era senão a amortização da culpa de outros no passado, assim resgatada. Ao ver-me assim tão enleado nestas coisas do passado e do futuro, o Garcia, adivinhador de que sou um seduzido encartado, estancou-se mais à frente ao lado doutra memória, erguida em monumento de granito, a Garcia de Orta». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT