Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«(…) Tem muito interesse o cerimonial que o Regimento dado por João III
à Universidade ordenava para a obtenção do grau de Bacharel. Diz o
curioso documento:
- Item, ordenamos que o Bacharel em qualquer ciência pague para a Arca do Estudo uma dobra de ouro de banda, e uma ao escrivão e bedel e um barrete com um par de luvas ao padrinho que lhe há-de dar o grau e luvas ao Reitor e Lentes que presentes forem ao Auto [Acto]; e será obrigado o Reitor com a Universidade e o Bedel diante com a sua maça, ir pelo graduado à sua pousada se for no bairro, e o trarão às Escolas honradamente, onde logo em princípio do Auto [Acto] fará uma arenga, e depois lerá uma lição, e acabada a lição e disputa se for em Artes... pedirá o grau arengando [discursando]; e depols disto dará as luvas aos sobreditos e fará juramento em as mãos do escrivão ou bedel, segundo abaixo se dirá, e, isto acabado, o Doutor ou Mestre lhe dará o grau, e depois de reeebido o grau, o graduado dará graças a Deus e aos presentes. E o que houver de receber grau tomará do Doutor ou Mestre da Universidade que lhe aprouver, e logo o tornarão honradamente para sua casa donde o trouxeram; e assirn havemos por bem que qualquer que se graduar arme [ornamente] o Geral de panos finos por honra do Auto [Acto].
Festejava-se assim, como ainda hoje se festeja por maneiras diferentes,
a obtenção da Licenciatura. Luís de Camões devia ter-se submetido, talvez com
espírito faceto, a todas estas praxes. Assim era preciso para obter o grau de
Bacharel em Artes. Deduz-se que,
se o graduado iniciou o seu curso aos treze anos (admitindo que
realmente nasceu em 1524), cursou
durante três anos, de 1537 a 1539, Gramática e Retórica; depois,
mais dois anos de Lógica e Filosofia Natural, isto é, de 1539 a 1542. Teria sido
assim, de facto, que teria beneficiado de uma prerrogativa concedida pelo aludido
Regimento, que permitia considerar os escolares habilitados a receber o
pretendido grau, desde que testemunhas
juradas provassem perante o
escrivão do Estudo e o Reitor ou Mestre que o há-de graduar, que frequentara o Curso pela maior parte do ano?
Esta porta escusa do Regimento facilitou o abuso de alguns pseudo-estudantes se
diplomarem ràpidamente, sem chegarem a pôr os pés nas aulas, apesar de se
submeterem a um suposto exame em que tinham de
ler três lições disputadas, apontadas de um dia para o outro.
Luís de Camões, porém, revelou desde cedo uma bagagem de conhecimentos
tão vasta e tão profunda que não nos permite a hipótese de ter recorrido a
estes subterfúgios para obter o seu grau-de Doutor em Letras ou de
Bacharel Latino, se acaso o obteve. Sabia tanto eomo os mestres e
possuia a mais do que estes uma imaginação criadora, que se pode educar, mas
que nunca se adquire nas escolas por mais eficientes que elas sejam.
Como o poeta viu e descreveu a vida devassa de Lisboa
Em 1542, contaria Luís de Camões entre dezoito e vinte anos, quando
alcançou o seu grau de Bacharel e regressou a Lisboa, a casa de seus pais. Devia
trazer a mente repleta de formosos projectos, bem próprios da sua idade. Sentia-se
vigoroso, mais culto do que a maioria dos jovens, garboso, saudável e trazendo
na bagagem alguns poemas da sua lavra que já o tinham notabilizado em Coimbra. Parece,
não há a certeza que, terminado o seu curso, não quisera seguir a carreira
eclesiástica para o qual o tio Prior Crastense gostaria de vê-lo encaminhar-se.
Bento de Camões, certamente ainda mais austero do que os pais tiranos daquela
época, refreara-o muito nos seus ímpetos juvenis, que já então faziam da
mocidade ciombrã a mais tumultuosa de todo o reino. Se alguma vez por outra
lograra escapar-se à apertada vigilância daquele tutor atento e severo, por via
de regra ver-se-ia punido pela mais leve falta e mantido numa disciplina
férrea, da qual estaria ansioso por libertar-se». In Mário Domingues, Camões, A sua
Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1968.
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