sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Presente do Mar. Anne M. Lindbergh. «As ondas altas na praia, o vento nos pinheiros, o lento bater de asas das garças do outro lado das dunas, tudo isso abafa o ritmo frenético da cidade, com seus compromissos de hora marcada e suas obrigações. Ficamos como que enfeitiçados pelas ondas, pelo vento, pelas garças»

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«(…) Reflectindo honestamente sobre a própria experiência dela, tentando manter a calma interior e, ao mesmo tempo, reagindo ativamente, como todos nós devemos fazer ao aqui e agora, minha mãe libertou-se placidamente para sua própria vida e para a vida como um todo. Ao escrever Presente do mar, ela encontrou uma nova forma de estar no mundo, para ela e para os outros. Fico feliz em saber que com esta edição do 50º aniversário toda uma nova geração de leitores poderá acompanhá-la. In Reeve Lindbergh, 2005.

Apresentação
Comecei a escrever estas páginas para mim mesma. Queria elaborar meu próprio modo de viver, meu equilíbrio pessoal na vida, no trabalho e em meus relacionamentos. Como penso melhor com um lápis na mão, passei a escrever naturalmente. À medida que os pensamentos ficavam claros no papel, fui percebendo que a minha experiência era muito diferente da experiência de outras pessoas. (Será que todos temos essa mesma ilusão?) Em alguns aspectos, sentia-me mais livre do que a maioria das pessoas; em outros, muito menos. Além disso, eu pensava, nem todas as mulheres estão buscando um novo estilo de vida ou um canto contemplativo só para elas. Muitas estão satisfeitas com a vida que têm. À primeira vista, parecem lidar com tudo muito bem, muito melhor do que eu. Com inveja e admiração, eu observava a perfeição de porcelana com que transcorriam seus dias calmos e bem planeados. Talvez não tivessem problemas, ou já tivessem, há muito, encontrado as soluções. Então decidi que esses debates só teriam valor e interesse para mim.
Mas, à medida que escrevia, conversava com outras mulheres, mais novas e mais velhas, com vidas e experiências diferentes, algumas independentes economicamente, outras buscando uma profissão, umas trabalhando com afinco como mães e donas de casa e ainda outras que se sentiam à vontade com seu estilo de vida. Foi então que concluí que essas preocupações não eram só minhas. Descobri que muitos homens e mulheres, em diversas situações e de formas diferentes, estavam envolvidos com as mesmas questões que eu, ansiosos para discutir e elaborar possíveis respostas. Até mesmo aqueles cujas vidas pareciam transcorrer imperturbáveis, sob rostos sorridentes, estavam também tentando, como eu, adoptar um novo ritmo de vida, um ritmo entremeado de momentos mais criativos, mais ajustado às suas necessidades individuais, com relacionamentos novos e mais intensos com eles mesmos e com os outros. E assim, pouco a pouco, estes capítulos tornaram-se muito mais que minha história pessoal, inspirados que foram em diálogos, discussões e revelações de homens e mulheres de vários grupos. Decidi então devolvê-los às pessoas que compartilharam muitos destes pensamentos comigo. E aqui, com sentimentos de gratidão e companheirismo por aqueles que trabalharam na mesma direcção, devolvo meu presente do mar.

A Praia
A praia não é um lugar para se trabalhar, ler, escrever ou pensar. Deveríamos nos lembrar disso dos anos anteriores. Muito quente, muito húmida, muito amena para qualquer disciplina intelectual ou altos voos espirituais. Mas nunca aprendemos. Cheios de esperança, levamos nossa sacola de palha desbotada repleta de livros, papéis, longas cartas não respondidas, lápis bem apontados, listas e boas intenções. Os livros permanecem fechados, as pontas dos lápis se quebram e os blocos continuam com as folhas limpas como um céu claro, sem nuvens. Nenhuma leitura, nenhum escrito, nenhum pensamento, pelo menos no começo. A princípio, o corpo cansado toma conta por completo. Como se estivéssemos a bordo de um navio, caímos numa apatia profunda. Revoltamo-nos contra a nossa própria mente, contra todas as decisões inadiáveis, voltando aos ritmos primitivos da beira-mar. As ondas altas na praia, o vento nos pinheiros, o lento bater de asas das garças do outro lado das dunas, tudo isso abafa o ritmo frenético da cidade, com seus compromissos de hora marcada e suas obrigações. Ficamos como que enfeitiçados pelas ondas, pelo vento, pelas garças. Soltamos o corpo, nos espreguiçamos na areia. É como se nos tornássemos a própria areia, amortecidos pelo mar. Expostos, abertos, vazios como a praia, deixamos que as marés apaguem nossas marcas passadas. De repente, numa manhã qualquer da segunda semana, a mente desperta, renasce para a vida outra vez. Não no sentido urbano, mas no sentido marinho. Ela começa então a flutuar, a se mexer, a fazer movimentos suaves e negligentes como as ondas preguiçosas que se quebram na praia. Nunca se sabe que possíveis tesouros essas ondas inconscientes vão lançar à areia branca e suave do consciente. Talvez uma pedra redonda de formato perfeito ou uma concha rara do fundo do mar; talvez uma concha-pera, uma concha-lua ou até mesmo um argonauta. Mas esses tesouros não devem ser procurados, muito menos desenterrados. Nada de escavar o fundo do mar. Isso frustraria nosso objectivo. O mar não recompensa os que são por demais ansiosos, ávidos ou impacientes. Escavar tesouros mostra não só impaciência e avidez, mas também falta de fé. Paciência, paciência e paciência é o que nos ensina o mar. Paciência e fé. Precisamos nos deitar vazios, abertos e sem exigências, como a praia, esperando por um presente do mar». In Anne Morrow Lindbergh, Presente do Mar, Introdução à edição do 50º Aniversário, Reeve Lindbergh, 2005.

Cortesia de Wikipédia/JDACT