A tradução
de clássicos
«Aquilino
Ribeiro publica a sua obra de estreia em 1913. Trata-se de um livro de contos, Jardim das Tormentas,
título de clara sugestão anatoliana. Mas antes da estreia oficial, nos anos
antecedentes à implantação da República, o jovem Aquilino dedicara-se a
traduzir vários autores, sem que se chegasse a saber, muitas das vezes, o
verdadeiro nome do tradutor. Isso mesmo nos é confessado no livro de memórias Um
Escritor Confessa-se. O primeiro
trabalho remunerado do jovem Aquilino é mesmo uma tradução. A
oportunidade fora-lhe proporcionada pela Livraria Bertrand para traduzir Il
Santo, obra de Antonio Fogazzaro. O livro suscitara grande alvoroço em
Itália, onde o autor era associado às tendências modernistas. Com dicionário e
gramática em punho, ajudado pela tradução francesa, verte o romance para
Português.
Datam
deste período outros trabalhos de tradução, resultantes da proposta, por atacado, da Livraria Tavares
Cardoso. Traduziu então autores em voga (entre os quais Tolstoi, Mantegazza,
Dubut de Laforest), tarefa que manteve durante um ano e pela qual recebia um salário com regularidade. Dessa forma
conseguia meio de sustento e, concomitantemente, firmava o punho na arte de redigir e exercitava o domínio da língua
francesa. Lamentava apenas ver mais tarde nos escaparates os livros
traduzidos sem que se soubesse quem era o tradutor. Quando se deslocava à
aldeia durante um período mais prolongado, aí trabalhava afanosamente nas
traduções. Recebia as obras por encomenda e enviava-as pelo correio. Escrevia
então com denodado afinco horas a fio. Aquilino tinha nesta altura 20
anos e saíra dois anos antes do seminário de Beja, onde a sua formação
humanística lhe permitia ler no original o Latim, Grego, Francês e Espanhol
(mais precisamente o Castelhano e o Galego). Embora de menor relevância no
conjunto da obra, as versões surgidas nos primórdios da carreira podem fornecer
elementos importantes para a conformação de escrita e definição de tendências
estilísticas, que só mais tarde viriam a revelar-se na afirmação da carreira de
escritor. Por outro lado, como salienta a este propósito Freederik Garcia, a função de tradutor representou muitas
vezes substancial investimento estético e emocional, como, de facto, Aquilino
dá conta em vários testemunhos.
A
tradução de António Gouveia
Em
Prol de Aristóteles
As
primeiras traduções de vulto surgem durante o exílio, em França, para onde se
evadiu em 1908, após fuga da prisão.
Chegado a Paris (essa Paris adorável, um
pouco mais do que uma sucursal do Paraíso na terra, como a descreve nas
primeiras impressões), aí investe, entre 1910 e 1913, na sua formação
académica. Nesta altura, poucos colegas da Sorbonne possuíam uma cultura
clássica como a do estudante beirão, alicerçada no conhecimento dos idiomas
grego e latino. E o desejo de aprofundar estes idiomas surge a pretexto da
tradução de dois trabalhos de fôlego, aos quais a crítica tem concedido pouca
atenção. Enquanto estudante de Filosofia da Sorbonne, inicia o trabalho de
tradução de Responsio pro Aristotele, de António Gouveia, com o
intuito de apresentar uma tese que
revelasse ao mundo a cultura clássica portuguesa. António Gouveia,
ilustre Professor de Humanidades e de Direito (irmão de André de Gouveia
e, como ele, humanista de renome), também estudara em França. Mais tarde, já
como professor de Humanidades no famoso Colégio de Santa Bárbara, viera à liça
defender o Estagirita (em Abóboras no Telhado,
Aquilino refere como surgiu a oportunidade de verter este texto para português,
evocando o tempo da Sorbonne, onde, em vez de passar o tempo todo na rambóia
amável do Quartier Latin, se dedicava às leituras, seleccionada e à tradução; se
sobre Aristóteles já havia sido dito o essencial, faltava a tradução integral
da Responsio,
súmula do debate que Gouveia sustentou
com La Ramée, Petrus Ramus. O assunto era mesmo a defesa do Organon, uma
espécie de código completo e definitivo do espírito). Além deste opúsculo de 1543, A. Gouveia editou vários textos de clássicos (entre os
quais Terêncio, Cícero e Virgílio). Esse trabalho é
recuperado por Aquilino trinta anos mais tarde e publicado, em 1940, com o título Em Prol de Aristóteles.
A tradução de Xenofonte
A Retirada dos Dez Mil e O Príncipe Perfeito
Quanto à escolha de
Xenofonte, Aquilino afirma por diversas ocasiões o fascínio sentido pelo
famoso polígrafo ateniense. Numa forma bem característica de se exprimir,
entende que, espraiando olhos por essa
espécie de pano de fundo da feira humana (...) que é a História, se
procurássemos um homem dos tempos antigos para servir de padrão nos nossos dias
talvez não fosse desacertado escolher Xenofonte. Aqui está um tipo às direitas,
que não tinha frio nos olhos nem teias de aranha no entendimento. Os
critérios adoptados na tradução são definidos no estudo introdutório da obra,
começando o tradutor por explicar a razão de ser da adaptação do título. Ao
preterir o título original do livro, Anábase, para A Retirada dos Dez Mil,
entende ter cometido uma infidelidade.
Mas explica porquê:
- Anábase na sua significação léxica quer dizer marcha para o interior. A avançada estaca, porém, ao fim do livro primeiro, para os seis restantes se ocuparem com o refluxo dos mercenários sobre o ponto de partida. O próprio título original não condiz, por conseguinte, com a extensão do feito militar. Chamaram-lhe certos tradutores Expedição dos Dez Mil mais impropriamente ainda porquanto o exército que Ciro concentrou em Sardes e dirigiu contra seu irmão Artaxerxes compunha-se de cem mil bárbaros e treze mil gregos, que eram entre hoplitas e peltastas as suas tropas de choque. De todos os títulos o que assenta mais plasticamente ao sucesso é retirada, tal como é denominado nos compêndios de história.
Além de questionar o título, o tradutor manifesta a preocupação
pela problemática genológica, indagando sobre o seu enquadramento na estrutura
convencional dos géneros literários». In Henrique Almeida, Tradução ou
Adaptação? A versão de Aquilino Ribeiro de Autores Clássicos, Universidade C.
Portuguesa, Viseu, Revista Máthesis nº 15, 2006.
Cortesia
de Máthesis/JDACT