sábado, 6 de setembro de 2014

O Sonho da Rainha. Alberto Pimentel. «No sorriso da rainha brilhou um clarão mais doce ainda que o habitual, como de uma consciência satisfeita e de uma alma amargurada que parece tranquillisar-se por alguns momentos. E emquanto a rainha sorria concentrada…»

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De acordo com o original.

«(…) E a rainha, conservando nos lábios o seu doce sorriso, de uma doçura vagamente triste, como de quem comprehende os grandes dramas da miséria humana, parecia concentrar-se n’uma preoccupação constante e d’ahi a pouco dizia phrases inteiras, como se estivesse sonhando, sem que os cortezãos pudessem comprehendel-a:
  • Creanças mirradas, como flores que o sol queimou, vão tocadas pela morte jazer na terra fria. Vel-as que passam, cantando e chorando: cantando a gloria de Deus, que as vai receber; chorando saudades do regaço materno, onde não tornarão a voltar. Sabeis quem as victimou? Foi um monstro mais carniceiro ainda do que Moloch. Quem pudera arrancar uma espada, d’além, d’aquella grande panóplia de el-rei, e atravessar de um só golpe o coração do monstro para libertar as creanças que elle espera de braços abertos! Os cortesãos trocavam entre si um olhar desconsolado, de amargura sincera, que parecia poder traduzir-se n’esta simples phrase: A rainha delira! E na bocca fresca da rainha, que parecia uma rosa de maio, continuavam a desabrochar palavras visionarias: - Agora, depois das creanças, vão passando donzellas vestidas de branco, frias e silenciosas, com as faces abatidas, os ossos furando a pelle. A sua formosura durou apenas um momento, porque os vermes do sepulcro cairam sobre os seus leitos e começaram a roer a carne mimosa, que lhes sabia tão bem como aos gulosos uma vianda delicada. Não vedes? Vão-n’as seguindo e chorando os seus namorados cobertos de luto, os seus pais que se arrepellam num frenesi de dor inconsolável. Pois eu quero fazer parar todo esse lúgubre cortejo, que parece encaminhar-se para um cadafalso, onde todos os dias são sacrificadas dezenas de victimas innocentes.
E os cortezãos, profundamente impressionados, não sabiam se deviam ouvir o monologo plangente da rainha ou a voz da multidão que dizia á porta do castello: Como a rainha é feliz!, temos inveja da rainha… - Não vedes, continuava a rainha, a turba dos operários que vão desfilando agora a passos incertos, movendo pernas descarnadas, braços resequidos, como a quererem luctar ainda com a morte que os arrasta? A sua respiração é ruidosa como o som de um folle que despeja o ultimo ar. A pallidez das faces, reparai, faz lembrar o limão verde, que os pássaros não querem bicar ainda. E o peito deprimido parece esmagado por uma pedra, que rolou do alto, para fazer victimas. Após esses esqueletos que passam, espraia-se o longo bando dos orphãos  desamparados e das viuvas desvalidas : creanças que choram, mulheres que soluçam, a procissão dos desgraçados, o cortejo dos míseros. - Como a rainha é feliz!, temos inveja da rainha, murmurava entretanto o povo á porta do castello.
E os cortezãos, cada vez mais convencidos de que a rainha delirava, olhavam entre si parecendo quererem dizer uns aos outros: - Como o povo se engana!, chegamos a ter dó do povo! Um dia, logo ao romper da manhã, as campainhas do castello soaram longa e estridulamente. Levantou-se grande borborinho em todo o paço real, porque não se sabia ao certo qual fosse a causa de tamanho alarme. Era a rainha que chamava, uma vez, muitas vezes, insistentemente, impacientemente. - Mandae procurar médicos, trazei quantos possam ser encontrados, que de todos preciso eu. Uma voz exclamou afflictivamente: - A rainha está indisposta! Tragam médicos, muitos médicos. E a rainha sorriu tranquilamente repetindo: - Médicos, muitos médicos. E nos seus lábios desabrochou mais uma vez aquelle sorriso doce, de uma doçura vagamente triste, como de quem comprehende os grandes dramas da miséria humana.
Foram chegando médicos, muitos médicos, e a rainha disse a todos e a cada um: - Horrorisa-me o espectáculo da devastação enorme, que uma só doença produz: a tuberculose. Quero fazer parar o cortejo que vai levando ao cemitério, todos os dias e a todas as horas, as tenras creanças mirradinhas, as lindas raparigas que o soffrimento fanou, e os magros operários que deixam viuvas e orphãos. Será possivel conseguil-o? E um dos médicos mais arrojados respondeu: - E', senhora. Outro, mais timido, observou: - Senhora, para fazer parar o lúgubre cortejo da tuberculose é preciso reconstituir desde o berço a natureza humana. - Pois bem, acudiu de prompto a rainha, iremos procurar as creanças ao berço para salval-as da sepultura. - Senhora, tornou o medico timido: a sciencia só não pode tanto. - Que mais é preciso?, perguntou a rainha. - A caridade. - Chamal-a-hei e ella virá, porque Jesus Christo disse: Pedi e dar-vos-hão. E então aquelle medico timido concluiu sentenciosamente - Senhora, o exemplo que vem do alto é como uma luz que illumina todos os corações. Seremos mais fortes e solicitos com o vosso exemplo: é o que pode prometter a sciencia dos homens.
No sorriso da rainha brilhou um clarão mais doce ainda que o habitual, como de uma consciência satisfeita e de uma alma amargurada que parece tranquillisar-se por alguns momentos. E emquanto a rainha sorria concentrada, como num ideal de felicidade muito intimo e consolador, a corte, refazendo-se de uma longa commoção, segredava-se commentando: - É a primeira vez que a rainha parece felizIn Alberto Pimentel, O Sonho da Rainha, PQ9261P4636, Livraria Editora Guimarães, Libânio e Companhia, Lisboa, 1900.

FIM
Cortesia de EGuimarães/JDACT