«(…) - E isto o que vem a ser?
- perguntou El-Rei mirando e remirando um frasco e uma banha negra que o enchia.
- Creme de túbaros de garanhão. Se o teu problema é o que eu julgo, e é mesmo,
esta é a solução indicada. Reticente, muito céptico, El-Rei guardou o frasco com
um desvelo infinito apesar do ar de cepticismo, e despediu a bruxa. Deu-lhe à
saída metade das moedas que antes previra. - Se ficar bom, mas só depois e
então, pagar-te-ei o resto. - Se não me pagares o resto nunca ficarás bom. Pensa
nisso e adeusinho, ó rei - respondeu a bruxa, fazendo uma figa com a mão
canhota e com a destra erguendo o dedo mínimo e o indicador a tourear descaradamente
El-Rei. Ainda levava as mãos em tais posturas quando transpôs a porta principal
do palácio, em companhia de Gil. Os soldados da guarda estranharam ver uma
freira com tais modos. Só por pouco e porque Gil disse virem mandatados de
ordens e incumbidos de tarefas de El-Rei os deixaram sair.
Mal El-Rei se besuntava com o bruxedo, adormecia tão profundamente que
nem uivos nem trovões ou ruídos mais sonoros o despertavam. Pelo menos os
sonhos. Sim, o monarca dava graças pelos sonhos, pois graças ao unguento da
bruxa os pesadelos tinham diminuído, trocados pelos sonhos. Não que agora
tivesse sonhos dignificantes, todos seriam melhores do que os habituais e
alucinados pesadelos de outrora, lá isso não, que não dignificavam. Atreveu-se
a contar um desses novos sonhos, e apenas um já escolhido e pensado, ao seu
confessor, frei Nicolau, tido por complacente, farrista e um pouco, na medida
da moral que nem cultivava muito, devasso até ao ponto em que o podia ser...
Frei Nicolau, apesar de tudo, ficou escandalizado com esse narrar: - Pois vós sonhais... isso?! O rei
não era muito dado a rezas nem a penitências, mas frei Nicolau, desde esse
sonho narrado, insistia em que o monarca orasse e se penitenciasse, chegando
mesmo a dar-lhe uma corda grossa enodoada com grandes nós, para que com ela
batesse nos costados, isto se tais visões, mesmo sonhadas a recato, o
assaltassem uma outra vez. A verdade é que El-Rei, guardando a corda numa arca
e jamais fazendo uso ou lembrança dela, e ignorando rezas penitentes, andava
feliz da vida e ansioso pela hora do deitar e do adormecer em sonhos tão
libertos quanto libertinos.
Os habituais pesadelos, sempre cruzados de morte e de sangue e de
passado, tinham desaparecido para darem lugar a pequenas orgias oníricas, onde
ele tomava grande e activa parte como personagem central e remexida, acordando
com um sorriso besta e beato e uma paz incomparáveis. Punha o unguento,
deitava-se e sonhava com as mais belas paródias de carne e amor carnal e
desnudo, sonhava com coisas que nem em jovem, principalmente depois de ter
visto a noiva de seu primo, mais tarde mulher daquele e, quando viúva, sua
esposa também, ousara imaginar. Seguia os conselhos da bruxa, portanto. E,
portanto, também os banhos de água fresca e corrente que ela recomendara
tinham-se tornado seu novo passatempo de todas as tardes.
É certo que no palácio o julgavam menos são de espírito: o rei, de
pernocas ao léu, num dos jardins do palácio, ainda por cima descalço até à
cintura, para levar a bruxaria mais à letra, mergulhando por vezes até às coxas
dentro de uma fonte! Obra! Ah, quem lhe dera ouvir uma
única frase de desdém ou de despeito e ele próprio açoitaria de bom grado, pois
que lhe agradava à função, o desavergonhado que a proferisse. Se pudesse,
corria a escumalha inteira que o rodeava... correria todos a pontapé de tão bom
grado...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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