«(…) Quanto às Musas, um
facto bem diverso é de salientar neste contexto. É que é a elas que o autor da Ilíada
invoca quando quer encetar uma daquelas longas enumerações a que chamamos
catálogos. A mais extensa e importante das quatro é aquela por que se inicia a
lista dos contingentes de guerreiros que tinham avançado para Tróia, por isso
mesmo conhecido como o Catálogo das Naus: Dizei-me agora, ó Musas habitantes
do Olimpo, - pois vós sois deusas, estais presentes e tudo sabeis, ao passo que
nós só ouvimos o que diz a fama, e nada vimos - quais os chefes e soberanos dos
Dânaos. Poderíamos continuar indefinidamente com exemplos, colhidos através
dos tempos, sobre a relação das filhas de Mnemósine com a inspiração do
poeta. Agora apenas tentámos demonstrar que somos dos que entendem, ao
contrário de Griffith, que muito antes do século V a.C. já a escrita era tida
como a fonte da memória, se
realmente, como as investigações mais recentes e mais autorizadas parecem
indicar, desde a primeira metade do século VIII a.C. ela tinha servido para
consignar e estruturar, nas duas longas epopeias fundadoras, uma tradição oral
em volta dos heróis da Guerra de Tróia, que atravessara toda a Idade Obscura,
desde o colapso da civilização micénica até ao que hoje se apelida de
renascimento que marca o começo da Época Arcaica. E com isto voltamos às
artes de Prometeu, o herói cultural que tirara os homens da obscuridade em que
viviam, no tempo em que olhavam sem ver,
ouviam sem escutar, para os erguer ao domínio da natureza e à posse da
sabedoria. As artes e as técnicas sucedem-se e, no meio delas, brilham com especial
fulgor o número, cúpula do saber e o trabalho criador das Musas. É
reconfortante, nestes tempos em que vivemos, este elogio do papel axial das
Ciências e das Letras como esteio indestrutível do progresso da Humanidade». In Maria
Helena Pereira, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador
das Musas.
A poética da tragédia sofocliana
«Quando Isócrates,
no Panegírico, critica
a facilidade com que os atenienses se deixam comover pelas ficções dos poetas,
ao passo que se mostram insensíveis perante as desgraças reais em que a Hélade
se encontra, refere um dos efeitos que Aristóteles dará como
característico da Tragédia, compaixão.
A censura pressupõe o reconhecimento da força emocional da Poesia, uma ideia
com fundas raízes na tradição grega desde Homero, mas para cuja teorização
estética muito contribuiu o surgimento e evolução do teatro trágico no século V
em Atenas. Era nele, provavelmente, que Isócrates pensava, ao dizer estas
palavras, não só porque a poesia dramática continuou a gozar de um enorme
prestígio, dentro e fora de Atenas, ao longo do século IV, muitas vezes com a
reposição de peças dos grandes trágicos entretanto desaparecidos; mas também
porque, em termos de efeitos emocionais, a tragédia ganhava a palma aos outros
géneros literários.
No século do seu
florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética,
diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o
espaço daquilo a que os gregos chamavam as artes das Musas, veio abrir novas
vias de reflexão à polémica já antiga acerca do valor da Poesia enquanto
discurso didáctico no contexto da pólis. Com o teatro tornava-se possível, se
não ultrapassar completamente, pelo menos questionar a validade da aplicação
ética da dicotomia verdade / falsidade às apreciações sobre a
criação dos poetas que, desde Hesíodo, se instituíra como principal critério
para a aferição da melhor poesia. O teatro partia do pressuposto óbvio e
assumido de que a representação era isso mesmo, representação, falsidade, portanto.
Isso, porém, não significava qualquer demissão dos poetas relativamente ao seu
ancestral papel pedagógico na pólis. Nunca a poesia deixou de afirmar o seu
valor intrínseco, enquanto saber formativo de um ideal de homem que, como muito
bem demonstrou Werner Jaeger, foi sempre o objectivo último da Paideia
grega. A comédia As Rãs de
Aristófanes, do final do século V, é um eloquente testemunho, ainda que
caricatural, de que esse desígnio didáctico, na perspectiva de dois dos maiores
representantes do género trágico, Ésquilo e Eurípides, continuava
a ser sentido como a verdadeira missão do poeta. E os ataques de Platão à
Poesia na República mais
não são do que a proposta de substituição desse anterior modelo pedagógico,
assente na aprendizagem dos poetas, por um outro, em que a filosofia deveria
assumir-se como discurso dominante». In Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de
Prometeu, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das
Musas. In Marta Várzeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
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