terça-feira, 16 de setembro de 2014

Abóboras no Telhado. Polémica e Crítica. Aquilino Ribeiro. «Em verdade, foi a partir dessa data que o livro passou a ter uma tal ou qual notoriedade e com o livro o autor debaixo da designação de ‘Cavalheiro de Oliveira’. “Mas que ideia, cavalheiro!”»

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Uma aventura Lliterária
«No casarão de S. Francisco havia um exemplar, considerado único, do Amusement Périodique, par le Chevalier d’Oliveyra, Londres MDCCLI. Tudo leva a crer que Oliveira Martins o tivesse compulsado, colhendo, o seu tanto de arrepêlo, um ou outro dado pejorativo com que, ao compor a História de Portugal, pretendeu formular a tese da irremissível decadência do povo português. Mais tarde, no leilão da livraria Fernandes Tomás, foram postos em hasta dois tomos da obra, quando consta de três, adjudicados por seis libras a Camilo Castelo Branco. Seis libras ao tempo eram uma mancheia de dinheiro, provando o empenho que o romancista tinha em adquirir o livro, e a sua raridade. Aproveitou-se dele, salvo pequenas achegas perdidas por cem mil páginas, na composição do Judeu. Em verdade, foi a partir dessa data que o livro passou a ter uma tal ou qual notoriedade e com o livro o autor debaixo da designação de Cavalheiro de Oliveira. Mas que ideia, cavalheiro! Termo híbrido, de importação espanhola, mais de uso nas alfurjas do Ferregial, entre as horizontais e seus clientes, do que no cursivo da língua, dir-se-ia que por acinte ou em vista ao entono da personagem, como alcunha, lho aplicou o mestre. Se por um lado o termo indica o homem bem educado, ou a sua chalaça, por outro, regendo a palavra indústria, define o meliante de alto bordo. O que não significa é o que Oliveira era de facto: titular do primeiro grau da Ordem de Cristo e que ele, à falta de brasões, adoptou nas embófias de megalómano sob a forma exclusiva de nome próprio, 'quando se usava e usa apenas como apanágio de distinção ou se faz alarde de honrarias. O conde de Tarouca referia-se-lhe com desdenhoso sobrecenho: Oliveira, que ridiculamente se denomina de Cavaleiro de Oliveira... Todavia, se em Portugal cavaleiro de Cristo era apenas uma mercê, em Viena de Áustria, espada no talim, farda, bigodes calamistrados, pernas arqueadas sobre o jarrete, era como um margrave este jovem senhor do Ocidente.
Pela aragem se tira a carruagem. Em afidalgamento tão anómalo se cifra a índole deste homem, bicho raro, aventureiro que tomou a vereda escandalosa e iconoclasta em face da inquebrantável ortodoxia nacional, sujeito de singularidades, graças ao quê, mais do que pelas letras, se evidenciou e se tornou motivo de reparo e especulação. Foi cedendo a este móbil que em 1921-22, o director da Biblioteca Nacional, Jaime Cortesão, me propôs fazer o estudo e versão de textos seleccionados do Amusement e um ensaio biográfico do autor. Eu tinha da matéria escassa notícia, como aliás toda a gente; Barbosa, que manteve relações epistolares com o Cavaleiro, além de sucinto, cinge-se à sua vida literária. Mediante as referências pessoais, sempre à flor da pena dum egoísta como ele era, conheciam-se-lhe as efemérides de maior relevo, os pegões da ponte. Mas o molecular, que na história dos indivíduos é o que mais interessa, ignorava-se absolutamente. Quem era? Qual o seu estofo de cidadão? Qual o segredo e dinâmica de avatares que o conduziram dum meio crasso de beatério, bentinhos e procissões, até o recinto luterano, onde se ergue a conclamar contra o credo católico que bebera de leite? Como descobrir na noite envolvente o fantasma desvanecido do incréu?
Reservei a minha resposta e fui ler o Amusement, as Cartas, as Mémoires, do Cavaleiro; mergulhei em todas as possíveis fontes; procedi a uma minuciosa e paciente rebusca de informes, e disse a Jaime Cortesão que, muito obrigado, mas renunciava ao encargo. Raul Proença, director dos Serviços Técnicos da B. N., o homem construtivo que até certo ponto chefiava o movimento de renovação político-filosófico que, partindo daquela casa, se estava a operar no seio da República, idosa apenas de uma década de anos, combateu por todos os modos a minha desistência. Era pertinaz a sua dialéctica e obsessivamente tão cheia de aliciações como de recursos suasórios. Travou-se ali a batalha de Jacob com o anjo. Claro, Jacob era eu». In Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand, Lisboa, 1955.

Cortesia da LBertrand/JDACT