terça-feira, 9 de setembro de 2014

Gargântua. Rabelais. «O papado morre de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A alegria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupiteriana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacerdotal come…»

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«(…) Julguei que era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar-se quanto ao soluço. Riamos porém. A morte está à mesa. A última gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da paródia, esplêndida coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais entroniza uma dinastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Rabelais é o Ésquilo da comezaina, o que é grande, se nos lembrarmos que comer é devorar. Há um abismo no comilão. Comei, pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma canção cujo refrão é morrer. Há quem escave sob o género humano depravado temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande Rabelais contenta-se com a cave. O universo que Dante punha no inferno, Rabelais mete-o dentro dum casco. O seu livro não é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri abarrotam e encerram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso casco, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça, Orgulho, Inveja, Avareza, Cólera, Luxúria, Gula; e é assim que de repente vos encontrareis com o temível folgazão. E onde? Na igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais é padre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É, pois, no clero que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A alegria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupiteriana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacerdotal come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabelais terá sempre diante dos olhos esta confrontação severa: a máscara da Teocracia fixamente contemplada pela máscara da Comédia». In Victor Hugo

Rabelais no tempo de Gargântua
«Desde o dia de Todos-os-Santos de 1632, Rabelais é médico-chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont, du Rhone, em Lyon: funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas que atestam a reputação médica de Rabelais, embora não figure no catálogo de Symphorien Champier. As suas primeiras publicações referem-se à medicina (Lettres médicales de Manardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo-testamento de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge Pantagruel, publicado para a primeira feira de Novembro de 1532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No rasto de Erasmo, mas de modo menos concertado e mais jovial, Rabelais contribui para o enterro da tradição escolástica e a restauração da idade áurea das Humanidades. Irá ele descansar à sombra do êxito do seu romance, consagrado pela condenação da Sorbonne, 1533, por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando na genealogia do seu herói de trás para a frente, conta as aventuras do pai deste, Gargântua, bem-conhecido do público desde o aparecimento do folheto de cordel Les grandes et inestimables Cronicques de l’énorme géant Gargantua (1532).

Vida em Chion e em Roma
Nem o cargo no Hospital nem as suas diversas publicações fazem de Rabelais um sedentário; em 1532, foi revisitar a sua terra de vacas, com a Devinière natal e os burgos vizinhos, Gravot, Chavigny, Cinays. Escutou as lamentações do seu velho pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho e antigo amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senhor de Lerné, médico da abadessa de Fontevrault. A chicana transformou em inferno o paraíso rústico. Antoine já não pode, como o bom Grandgousier, cozer as suas castanhas no átrio com toda a tranquilidade. Terá Françoise posto os seus conhecimentos jurídicos ao serviço do pai? Não se sabe, mas fará melhor, pois, no seu romance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante Picrocole, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre jornaleiro colérico, à espera de que as galinhas tivessem dentes. O riso consolará das maçadas do processo». In Rabelais, Gargantua, Gargântua, Publicações Europa-América, Clássicos, 1987.

Cortesia de PEAmérica/JDACT