«(…) Quis ser o primeiro a levantar-me, como é de norma: o senhor deve
estar a pé antes dos seus escravos. Sempre assim foi em minha casa e na de meu
pai. Mas já as servas acendiam o lume nas cozinhas e a comitiva de Proserpino
se aprestava para seguir viagem quando apareci no átrio. Ordenei que lhe
fornecessem alimentos para a jornada e reforcei-lhe a escolta, até meio
caminho, com quatro latagões armados. Proserpino foi tão efusivo que quase
beijou o meu chão, antes de partir. Nessa manhã não recebi ninguém. Mandei que
distribuíssem a espórtula, lá fora, aos poucos clientes que se fizeram
anunciar, e instalei-me à minha mesa de mármore verde, com cálamo, tinteiro e
papiro novo. Depois da visita de Proserpino, talvez em compensação do que ficou
calado, resolvi escrever sobre os acontecimentos que ocorreram em Tarcisis,
durante a minha magistratura. O que não conseguir recordar, comporei, sem
qualquer escrúpulo. A imaginação também é amparo da verdade. Pode ser que,
escrevendo, se me apazigue o espírito, com manifesta utilidade para mim. Mais
quero, porém, que este livro sirva de lição a quem o ler. Seja eu, então,
claro, preciso, atento, verdadeiro, hábil, imaginativo, e assim me inspire a
Providência. E não recusarei sequer a intercessão de certo deus que, nos primórdios,
ao que parece, passeava num jardim, pela brisa da tarde...
Aos 213 anos da era de
Augusto, 928 da fundação da Urbe,
sob o império de Marco Aurélio Antonino, era eu duúnviro em Tarcisis, pela
segunda vez, e exercia a magistratura juntamente com Gaio Cecílio Trifeno,
cidadão sobremaneira estimado, que deixou de viver subitamente e em circunstâncias
extravagantes. Trifeno foi um magistrado jovial, expendedor, benévolo e amador
de jogos. Passava mais tempo às refeições que nas termas, para não mencionar o
pretório, mas dava-se bem com a sua obesidade e o estilo de vida que a mantinha
e engrossava. Dormia muito. Lia pouco. Pensava menos. Discorria abundantemente.
Deixava sempre para amanhã as questões difíceis. Sabia tirar bom partido das
cumplicidades do curso do tempo. Furtava-se bem às traições dele. Não
interferia nunca com as minhas funções, mas mostrava-se-me grato se eu
interferisse nas dele. Mantinha boas relações com o governador, Sexto Tigídio
Perene, o que revelava bom tacto, paciência e elasticidade de espírito. Tudo o
recomendava para a razoável popularidade que granjeara e que, em parte, sobrava
para mim.
Os jogos que tinha organizado, anos antes, num dos seus anteriores
duunviratos, para comemorar a primeira vitória do imperador sobre os Marcomanos,
foram, é certo, catastróficos. À falta de circo, e na urgência da festividade,
mandou construir um redondel de madeira, semelhante na aparência, que não no
tamanho, ao que Vespasiano erigiu um dia em Roma, nos jardins da mansão
dourada. Vieram feras e gladiadores de Emerita, aurigas de Miróbriga e cortejos
de funâmbulos de todos os cantos da Hispânia. Os jogos não chegaram a realizar-se
no recinto, porque a bancada abateu logo que Trifeno atirou o lenço para a
arena como se fosse esse o sinal para a revolta dos materiais. Houve muita gente
morta, e, até alta noite, a exígua corte urbana andou desajeitadamente a caçar ursos
e mastins pelas ruas de Tarcisis. Os empreiteiros desapareceram e nunca mais
foram vistos.
Uma carta do governador tratou a cúria com severidade e vinculou-a a
indemnizar os familiares dos sinistrados, em conformidade com a categoria de
cada um, embora os jogos não fossem, em rigor, da iniciativa pública. Houve
protestos e reclamações. Pior acontecera em Roma, quando a bancada do Circo
Máximo abateu sob os olhos do imperador Antonino Pio, trucidando 1112
espectadores inocentes. Mas o município cumpriu e pagou. Correram, entretanto, uns
epigramas, supinamente grosseiros, que, jocosamente, atribuíam ao peso de
Trifeno o colapso das bancadas. Desde essa altura, mais ele assentou no seu
feitio de não tomar decisões. Eu firmei no precedente um bom pretexto para me
furtar à organização de jogos e mandei construir um teatro, que não chegou a
ficar concluído, no decurso das minhas magistraturas, porque todas as pedras e
mesmo as estátuas e lápides haveriam de ser desviadas um dia para a
reconstrução da muralha». In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela
Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando
Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.
Cortesia de Caminho/JDACT