As
Cartas
«(…)
Se você não se importa, punhamos de lado o primeiro dos problemas que neste
ponto se poderiam levantar e que seria o seguinte: se você, agora, é que vai aprender
filosofia, se você ainda não tem a tal concepção do mundo, por que razão se decide por um dos caminhos? Que o levou a
não ser médico ou engenheiro ou comerciante, a ter uma profissão lucrativa, a
acumular uma fortuna e a ter depois
uma vida de filosófico repouso? Por que não tomou ainda um terceiro
caminho: o de uma profissão lucrativa
casada com a filosofia? Não foi por ter razões, porque elas só poderão
existir depois da filosofia; foi por
instinto, por temperamento? Curiosa posição para um filósofo; terei
muito gosto em que me demonstre, em qualquer altura da sua vida, que agiu por
motivos racionais, porque eu, meu caro Amigo, fico desde já com a impressão de
que você agirá sempre por temperamento, como, segundo me parece, agem todos os
homens. Isto, porém, foi só apontar a questão: não a discutiremos por agora.
Há
outro problema, e muito grave. Posso estar na vida em três atitudes principais:
a
de dar, a de receber, a de dar e receber. Como tipo da primeira
poderíamos pôr Jesus, como tipo da segunda eu,
que você está sempre a acusar de egoísmo, como tipo da terceira atitude os milhões
e milhões dos nossos semelhantes. O seu caminho parece ser o de dar, sem nada
pedir, o que leva quase sempre a nada receber e até, por uma espécie de
esclerose, a nada querer receber; negarei que é um caminho muito belo, sob o ponto de vista artístico?
Claro que não. E muito difícil. Já lhe conhecemos todos os episódios principais,
sabemos da calúnia e da traição, da flagelação e da coroa de espinhos, do
caminho sob a cruz, e do calvário. Sob o ponto de vista estético, desejo que
renove a história, no seu plano, evidentemente, com simplicidade, sentido de
composição, humanidade e, se puder, convicção; mas talvez seja o contrário:
talvez seja mais belo fazer o mesmo sem convicção nenhuma, sem ter nenhuma ideia
clara da verdade; já lhe tenho dito por várias vezes que me perece ser a
incerteza de Jesus, a sua recusa diante de Pilatos, um dos elementos mais
impressionantes de toda a história da Paixão. Cristo morreu sem certezas, ou,
pelo menos, sem nenhuma das certezas que seriam essenciais: por isso o venero
tanto.
É
evidente que se poderia retorquir que ter assente o dar é já possuir uma
certeza; mas não deve ser certeza de ordem racional, porque você, repito, não
tem ainda uma filosofia; é uma certeza de ordem temperamental. Estará certo o seu temperamento?
Um temperamento está sempre certo em dois sentidos: primeiro, biologicamente, depois
na máquina do mundo. Biologicamente porque, dados os seus ascendentes, não
podia ser senão o que foi: é uma questão de genética e que não põe de modo algum
o problema do livre arbítrio, porque o exercício da vontade sobre o
temperamento é uma questão diferente da fatalidade de temperamento; biologicamente
ainda, porque tem de se contar com toda a influência do metabolismo no
temperamento, a menos que você, radicalmente, não ponha tudo isso como uma acção
a distância do gene; terceira vez biologicamente porque você vive em simbiose com
os homens e com os outros animais e essa simbiose não pode deixar de lhe trazer
modificação ao que seria, digamos, o seu temperamento inicial. Por outro lado,
o seu temperamento está sempre certo quanto à máquina do mundo: passamos
por aqui da biologia à física, e se quiser à matemática: cada
estádio do mundo é uma dedução, um desenvolvimento correcto, segundo a regras,
de um estádio anterior; segundo
que regras? Segundo as regras
de uma matemática universal? Creio que não; segundo as regras da nossa miserável matemática, da única que podemos
conhecer. Mas segundo regras, e é o que importa. Mas o seu temperamento,
se está certo segundo a ordem do poder, que é a da biologia e a da física, pode
não estar certo no plano do querer; que é o do espírito». In Agostinho
da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, 1943, colecção Obras de Agostinho da
Silva, Ulmeiro, 1990, ISBN 972-706-217-2.
Cortesia
de Ulmeiro/JDACT