De acordo com o original.
O
capitão ‘Bonina’
«Aquele que teve no século o nome
de António Fonseca Soares, e na religião o de frei António das Chagas,
nasceu na villa da Vidigueira a 25 de junho de 1631. Sua mãe, D. Helena Elvira Zuniga, posto que de origem castelhana,
era natural da Irlanda. Como se sabe, as luctas entre os catholicos da Irlanda e
os protestantes de Inglaterra acirraram-se sangrentamente no reinado de Carlos I:
os irlandezes trucidaram doze mil protestantes. Cromwell tirou d’esse morticínio
uma vingança terrível; fez á Irlanda uma guerra d’exterminio. Terêncio de
Zuniga, pai de D. Helena, empenhado na guerra religiosa, quiz subtrair a filha á
possibilidade de represálias deshumanas, e enviou-a para um paiz catholico, onde
podesse viver com segurança e tranquillidade. Elle ficou. D. Helena de Zuniga veio
para Portugal, e teve a felicidade de encontrar aqui a protecção da condessa da
Vidigueira, D. Leonor Coutinho, que a casou com António Soares Figueiroa. Sete semanas
depois do nascimento d’este filho, que não era o primogénito, foi António Soares
Figueiroa provido na judicatura de Villa-Nova de Portimão. No Algarve, António
Fonseca, ainda na puerícia, aprendeu a ler e escrever. Mas, attingindo idade
própria para proseguir no estudo das humanidades, foi enviado a Évora, onde com
somenos applicação cursou as aulas de latim e philosophia.
A sua predilecção era para a carreira
das armas. Os compendios escolares enfastiavam-n’o tanto, quanto a vida do exercito
lhe sorria tentadora. Aos dezoito annos recebeu a noticia da morte do pai, e teve
que recolher com a mãe e os irmãos á Vidigueira. Se hoje visitarmos esta villa do
Alemtejo, pitoresca posto que solitária, poderemos ainda fazer ideia do que seria
a mocidade de António Fonseca Soares apertada n’esse estreito circulo de
aventuras galantes. Deviam dar brado n’uma pequena villa de provincia os dezoito
annos de tão irrequieto moço, cujo animo pendia para a desenvoltura da vida militar.
Demais a mais corriam nas veias das mulheres da Vidigueira glóbulos ricos de sangue
minhoto, pois que mestre Thomé, thesoureiro da sé de Braga, a quem a villa fora
dada para que promovesse a sua colonisação, povoara-a com gente que trouxera de
Braga e de outras comarcas limitrophes. Quero dizer que as moças da Vidigueira
seriam acirrantes de polpudas carnes e bellas cores, magnifico aperitivo para
uns dezoito annos aventurosos.
Parece que um homicidio, que António
Fonseca Soares commettera na Vidigueira, teria origem na concorrência amorosa
aos favores de alguma das moçoilas plethoricas de sangue minhoto. Que foi um repto
a causa do homicídio, deprehende-se das palavras do seu biographo padre Manoel Godinho.
Referindo-se ao crime, escreve Godinho que António Fonseca tivera a defesa
de desafiado. Canaes, nos Estudos biographicos, diz a coisa por
claro. Fonseca batera-se, pois, com um adversário.
Os duellos estiveram em moda durante o século XVII. A moda chegou a excesso de loucura.
Sahiu uma pragmática reprimindo o abuso. Mas o auctor das Monstruosidades do tempo e da fortuna duvidava de que a pragmática fosse
cumprida, que bem antiga lei é a que prohibe os desafios, e não se poz em execução,
que bem disse o outro discreto, que as leis eram teias de aranha em que se prendiam
moscas, e nunca ficavam aves, porque estas rompem a rede, para ellas fraca, e aquellas
que por fracas não rompera, ficam.
O filho
do conde do Prado e seu cunhado o conde da Atalaya foram os primeiros que infringiram
a pragmática dos desafios. No livro das Monstruosidades enxameam noticias de
duellos por motivos frívolos, mas avulta o perfil de um duellista famoso, João
de Castro se chamava elle, que uma vez, por amor de uma comediante, desafiou
toda a cidade de Sevilha, e de outra vez, também em Castella, desafiou todos quantos
castelhanos assistiam á representação de uma comedia, em que João IV figurava não
como rei, mas simplesmente como duque de Bragança. Este João de Castro é
um verdadeiro D. Quichote do século XVII,
que bem merecia encontrar um novo Cervantes».
In
Alberto Pimentel, Vida Mundana de um Frade Virtuoso, Perfil Histórico do Século
XVII, PQ9191A65Z18, Livraria António Pereira, Lisboa, 1889.
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