Uma
aventura Lliterária
«(…)
E mais por lhes ser agradável, do que pelos atractivos que encontrava em missão
tão espinhosa, resignei-me a aceitar. Seria, bem entendido, um trabalho à
margem dos meus deveres profissionais, regulado portanto pela carta
estabelecida de direitos entre publicista e editor. Seja dito de passagem que
nunca fui pago integralmente. A certa altura
interpôs-se a contabilidade do Ministério da Instrução na pessoa dum tal
Codina, com as suas tricas protocolares, as suas verbas pré-orçamentadas, e não
obstante a declaração de dívida, ratificada pelo inspector das Bibliotecas e
Arquivos, Júlio Dantas, nunca houve meio de cobrar o que me pertencia. Certos
funcionários do Estado julgam esta entidade um círculo restrito de interesses
que é preciso defender à maneira cartaginesa. As revindicações de quem está de
fora passam a plano secundário. A Fazenda Nacional beneficia de um respeito
sagrado, noli me tangere. O
contribuinte é apenas pagão. Se recalcitra e apela para os tribunais, o seu
opositor tem por si todos os privilégios a começar pela comandita tácita que há
de funcionários para funcionários e a recrescer com a razão supina de que não
paga emolumentos de nenhuma ordem, tanto papel selado, como selos, como o mais
processual lhe sendo gratuito.
Como lutar contra tal potestade? O pobre pagão
não vê caminho mais simples, mais barato e mais expedito nas suas pendências
com tal entidade do que submeter-se e deixar-se espoliar. Chama-se a essa sua
atitude, comparável à da vítima sob o revólver do maítre chanteur, pagar e não bufar. É manifesto que o prepotente
acaba por concitar de parte do contribuinte a mais revulsiva antipatia. Defraudá-lo
torna-se represália tão legítima como ludibriá-lo. Mas como? Para quem apelar da cominação dos Codinas, arvorados
em argos do patrão olímpico, mais fero, mais absoluto, mais invulnerável neste sobado ocidental do que em nenhuma
parte do globo? Aceite a empreitada; pus mãos à obra. Como atrás se
diz, não havia nada quanto às inquirições do Cavaleiro. Voltei a
concentrar-me sobre as Cartas e Amusement com redobrado
obséquio. Era como surpreender na areia movediça pisadas problemáticas;
respigar no estratificado do solo esquírolas anatómicas dum bicho ante-diluviano
e fazer a sua reconstituição. Não desdenhei de um elemento. Fui detective,
romancista, fariscador de diamantes, e fiz todos os esforços para ser psicólogo.
Aproximei factos de factos: verifiquei datas; ajustei referências a
referências; pesei o concreto na balança de ourives; eliminei o
inseguro; fiz um esbatido de gestos e feições; numa palavra, ressalvadas
as distâncias, procedi para com o Cavaleiro como Cuvier para certos indivíduos
da fauna extinta. O sábio com dois ou três fragmentos ósseos, umas vertebras, um
ilíaco, reconstituía um esqueleto e daí um tipo. O Cavaleiro, mais certo,
menos certo, mas com uma fisionomia determinada, emergia da noite que desceu
sobre ele com o tempo, os nevoeiros de Londres, o silêncio expresso, graças à
minha paciência chinesa e atenção precavidosa». In Aquilino Ribeiro, Abóboras no
Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand, Lisboa, 1955.
Cortesia
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