As
Cartas
«Conhecemos
tão pouco da vida, do mecanismo complexo que deve ser este do mundo que,
segundo me parece, o decidir-se não tem grande valor, senão no que respeita à
estima que poderemos manter por nós próprios, à confiança que talvez seja
absurda, mas que em todo o caso nos permite o viver. Creio que, sejam quais
forem as circunstâncias, tanto faz decidir-se depois de ter pensado bem um
ponto como decidir-se atirando uma moeda ao ar; meditamos gravemente, pesamos
todos os elementos, depois fazemos exactamente o que faria o homem que tendo
visto apenas a milésima parte de um milímetro do dente de uma roda de
engrenagem tivesse opiniões firmes sobre o género de papel ou de bolacha
fabricada pela máquina que não a percebe no seu conjunto. Só por um extraordinário
acaso se poderá acertar; temos todas as possibilidades, caro Amigo, de tomar
sempre uma decisão errada; a sorte da moeda ainda deve talvez ser a melhor, porque,
pelo menos, suprime do sistema, já complexo, um elemento que pode perturbar: o
da nossa vontade.
A
sua decisão de se dedicar à filosofia repousa, pelo que me diz e pelo que eu
conheço de si, no entusiasmo que lhe despertam as leituras dos filósofos, no interesse
que têm para o meu Amigo todos os grandes problemas filosóficos e no gosto que
teria em apresentar um dia uma congeminação sólida, sem falhas, sobre a estrutura
do mundo, sobre o sentido da vida. O não ter posto qualquer espécie de
preocupação material, o não ter pensado logo, como quase todos os outros, nas possibilidades
que haveria para si de se empregar no fim do curso, não lhe deve ter deixado de
aparecer como um bom gosto moral, porque o sei bem sensível em tais questões. Como
esta nossa conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante
de outras nossas conversas, porque, como já teve ocasião de me dizer, não
possuo muito o talento da construção lógica, vou dizer-lhe o que penso deste
ponto, ou, pelo menos, de uma parte dele. Não sei por que motivo o meu Amigo
põe de lado tão ligeiramente os interesses materiais: não ignora decerto que há
países em que a profissão de filósofo, de filósofo de ensino, não dá nenhuma
espécie de compensação material: é um trabalho para vegetar, não realmente para
viver. Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta ser um filósofo, não no
sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se
dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de
acordo com a sua filosofia, à maneira de certos gregos e de quase todos os
indús. Se isto é assim, o facto de se não importar muito com a parte material
da vida, de ter, como se diz, desprezo pelo dinheiro, é já a consequência de
uma filosofia; se fosse a sua filosofia a estar de acordo com a vida, você
construiria por exemplo uma filosofia de miséria sobre uma vida de miséria;
mas, como é o contrário, você sobre uma filosofia de desprezo dos bens materiais
constrói uma vida em que esse desprezo se manifesta amplamente; mas desprezo ou repulsão? Um
Séneca, como você talvez já saiba, teve o desprezo das riquezas, mas foi
banqueiro; um santo tem o desprezo da riqueza e nunca é banqueiro: são duas
atitudes diferentes. Você naturalmente vai pela primeira: se a miséria vier, paciência,
se vier a riqueza, paciência também». In Agostinho da Silva, Sete Cartas a um
Jovem Filósofo, 1943, colecção Obras de Agostinho da Silva, Ulmeiro, 1990, ISBN
972-706-217-2.
Cortesia
de Ulmeiro/JDACT