A
tradução de Xenofonte
A
Retirada dos Dez Mil e O Príncipe Perfeito
«(…)
Como classificar uma obra revestida de pluridiscursividade, dispersa por vários
livros e onde abundam posições críticas pessoais, por vezes discutíveis? A resposta, reveladora da sua
apreciação pessoal, é dada nestes termos:
- Se procurássemos demarcações na Anábase, sob o ponto de vista de género literário, teríamos que até o fim do primeiro livro se trata de correspondência de guerra, directa, rápida, com a sua nótula acidental histórica ou mitológica, como se faz hoje, daí em diante memórias, como é também de uso clássico. De singular na segunda parte há que o memorialista desborda a tal ponto sobre os mais figurantes que estas páginas chegaram a ser classificadas de patranha deliciosa.
Mas todas estas referências só
serão compreensíveis se forem acompanhadas da contextualização histórica. Por
isso, o tradutor mostra a preocupação de orientar o seu leitor. Desde
início, no lugar privilegiado do paratexto, expõe uma síntese introdutória do
que foi, do seu ponto de vista, a retirada dos Dez Mil:
- Aí quatrocentos anos antes da era cristã, a Grécia não tinha ainda acabado de convalescer das feridas que lhe deixara a guerra chamada do Peloponeso, em que, durante vinte e sete anos, renhiram de morte as duas principais comunidades helénicas: Atenas e Esparta. A guerra acabou com a hegemonia de Atenas graças aos auxílios de toda a ordem que prestou aos Lacedemónios Ciro, filho do rei da Pérsia, sátrapa da Lídia.
Este
envolvimento com a obra de Xenofonte permitiu a Aquilino recorrer a uma
série de referências intertextuais em diferentes momentos da sua produção de
escrita. E tudo começou nos tempos da juventude. A esse período alude no
prefácio da 1ª edição, em 1938,
quando lembra como a erupção da guerra interrompera os seus estudos do Grego e
como fora devaneio puro abalançar-se a pôr
pé num mundo morto. Lucrou, contudo, ter conhecido Xenofonte, homem extraordinário. Num olhar retrospectivo,
o grande cometimento da tradução, abruptamente interrompido e só mais tarde
continuado, terá nascido de inconsciente
e alado desejo (o Prefácio foi escrito na Cruz Quebrada, em 1938, ano da primeira edição da obra,
com capa de Eduardo Faria. Aquilino começa por contar como travou relações a
fundo com Xenofonte e explica adiante a razão de ser da alteração do título da
obra original e como o fez ressurgir após muitos anos de letargia: Foi em Paris, um ano antes da Grande Guerra
– era eu estudante de letras na Sorbona – que travei relações com Xenofonte,
natural da Ática, filho dum fidalgo rural de meia-tigela, Grilos. Conhecia-o
muito pela rama, dos tempos em que estudei história pelo padre Alves Matoso, autor
de consciência larga que principiava com os sete dias da Criação. Apresentou-mo
certo francês que não era eclesiástico nem doutorado, pelos vistos, e tinha a
unção e sabedoria dum velho mestre sulpiciano).
Mais tarde, já na década de 50, Aquilino
regressa a Xenofonte, desta vez para traduzir Ciropedia (Kirou Paideia). A opção
justificava-se por se tratar de uma obra-prima do género, cuja influência, como
refere, se fez sentir pelos tempos fora
até aos nossos dias. Tratado de pedagogia, de moral e das artes do comando,
tudo isso se enfaixou numa bem urdida novela. Daí o seu encanto. Quanto ao
título, Aquilino questiona-se por que razão, na tradução original do
grego, se traduziu Kirou Paideia para Ciropédia.
Ciropédia era, em seu entender, formação
léxica abusiva, porquanto resultou daqui um substantivo comum, o que é
contrário à lógica da denominação original. E explicava:
- Ignoro se foi a filologia alemã, se a francesa a causadora do que julgo ser um dislate. Seja como for, o título vulgarizado é impróprio, e permitimo-nos dar-lhe aquele que corresponde ao pensamento e essência dramática das personagens que se agitam na obra. Trata-se da criação, no sentido lato da palavra, dum príncipe, príncipe ideal, imaginado, construído segundo o protótipo da pedagogia grega, perfeito por consequência. Julgamos que assim fica justificado o título com que o livro vai afrontar a luz crua e avessa do nosso século.
Já
quanto à motivação para ter empreendido a tradução, foram, segundo afirma,
motivos literários ou de conceito que o levaram a essa tarefa. Preferiu este a
outros trabalhos de autores modernos, apesar de n’O Príncipe Perfeito ter
encontrado muito de obsoleto e que seria absurdo tentar revigorizar. Contudo,
muito havia a aproveitar, nomeadamente os ensinamentos relativos às relações
humanas e ao governo da polis». In Henrique Almeida, Tradução ou Adaptação? A
versão de Aquilino Ribeiro de Autores Clássicos, Universidade C. Portuguesa,
Viseu, Revista Máthesis nº 15, 2006.
Cortesia
de Máthesis/JDACT