Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
«(…) Ora, à data em que as cartas chegaram ao seu destino, já as Cortes
se tinham dissolvido, embora muitos procuradores dos três braços do Estado
ainda se eïncontrassem em Almeirim e Santarém. Os governadores levaram ao
Conselho do Estado a carta que lhe fora endereçada pelo rei católico. Bem se
esforçou o bispo de Leiria, que fazia o jogo de Castela, por que o referido
Conselho favorecesse o monarca estrangeiro, mas não o conseguiu. Aquele alto
organismo corusultivo votou que os governadores não tinham poderes para aprovar
convénios e, como as Cortes acabavam de ser dissolvidas, só novas Cortes
poderiam apreciar e decidir sobre o magno problema. Além disso, era preciso que
o rei de Castela ouvisse e respondesse aos embaixadores que Portugal lhe
enviara e que tinham saído de Almeirim em 4 de Março (a 20 de Março, data do Memorial, ainda se ignorava que Filipe
II receberia a embaixaoa). No braço do clero, como os prelados Teotónio Bragança
e o bispo de Miranda, anticastelhanos, considerassem uma afronta a abusiva
intromissão do rei católico nos assuntos portugueses, os restantes membros
acabaram por compor esta resposta dúbia: que, dissolvidas as Cortes, nenhum
valor jurídico teria o que pudessem decidir; contudo, fiados nas grandes virtudes
de Filipe II, aguardavam a resposta que lhes trariam os embaixadores portugueses.
No braço da nobreza também se ouviram protestos contra a insolência de
um monarca estrangeiro gue ousava dirigir-se à assembleia suprema de outro
reino. No entanto, a sua resposta foi idêntica à do braço do clero.
Restava o braço popular. Foi o licenciado Rodrigo Vásquez, que
também desempenhava funções de embaixador, quem lhe apresentou a carta de
Filipe II. Apesar de oficialmente dissolvidas as Cortes, ainda se encontravam
em Santarém muitos procuradores dos concelhos. Escutaram-no em profundo
silêncio. Por fim, Febo Moniz limitou-se a declarar secamente que a Junta
não tinha nenhuma resposta a dar. Com autorização dos governadores, as
câmaras municipais de Lisboa, Coimbra e Évora receberam os emissários do monarca
estrangeiro. Pois, apesar de no seu seio já alguns procuradores se encontrarem
secretamenüe peitados, nenhuma entregou carta de adesão ou qualquer promessa de
obediência ao sôfrego pretendente ao trono de Portugal. Não havia dúvidas de
que ninguém se atrevia a entregar-lhe o reino. Se queria o trono, tinha de empregar
a violência. O que, em despeito da desorientação dos portugueses, seria sempre
contingente.
A repercussão internacional do problema português
Ainda com as Cortes de Santarém e Almeirim em actividade, a meados de
Fevereiro, ou seja cerca de duas semanas depois da morte do cardeal-rei Henrique,
os governadores escreveram ao papa Gregório XIII e a alguns soberanos cristãos,
a participar-lhes o falecimento do monarca. Desejosos, porém, de passarem por
muito atentos à defesa da independência de Portugal, tanto aos olhos de
nacionais como de estrangeiros, e talvez para iludirem, também, os dois colegas
de governo,João Telo Menesres e Jorge Almeida, arcebispo de Lisboa, que não se
tinham vendido, aproveitaram o ensejo para pôr em foco a situação do reino que,
faltando-lhe o rei natural, se quedava como que órfão e indefeso. Mas à rainha
Isabel I de Inglaterra dirigiram-se num tom mais comovente, recordando-lhe as
velhas alianças, quer políticas quer de sangue, que havia mais de dois séculos
uniam as duas nações, e predindo-lhe, ante as claras ameaças de Filipe II,
rápido auxílio para defesa da justiça.
Nesse período sombrio da história, meia Europa odiava a Espanha pelo
domínio tirânico que exercia na Flandres, em grande parte da Itália, em regiões
germânicas e pela ameaça que constituía para a França e as Ilhas Britânicas. Os
mais poderosos desses reinos ameaçados tinham toda a conveniência em evitar que
o rei católico aumentasse ainda mais o seu poder, absorvendo Portugal, que,
além de lhe oferecer magnífica posição estratégica no Atlântico, lhe abria ainda
mais largos caminhos para as riquezas da Ásia e do Brasil, no Novo Continente».
In
Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição
da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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