quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Restava o ‘braço popular’. Foi Rodrigo Vásquez, que desempenhava funções de embaixador, quem lhe apresentou a carta de Filipe II. Apesar de oficialmente dissolvidas as Cortes, ainda se encontravam em Santarém muitos procuradores dos concelhos»

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Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
«(…) Ora, à data em que as cartas chegaram ao seu destino, já as Cortes se tinham dissolvido, embora muitos procuradores dos três braços do Estado ainda se eïncontrassem em Almeirim e Santarém. Os governadores levaram ao Conselho do Estado a carta que lhe fora endereçada pelo rei católico. Bem se esforçou o bispo de Leiria, que fazia o jogo de Castela, por que o referido Conselho favorecesse o monarca estrangeiro, mas não o conseguiu. Aquele alto organismo corusultivo votou que os governadores não tinham poderes para aprovar convénios e, como as Cortes acabavam de ser dissolvidas, só novas Cortes poderiam apreciar e decidir sobre o magno problema. Além disso, era preciso que o rei de Castela ouvisse e respondesse aos embaixadores que Portugal lhe enviara e que tinham saído de Almeirim em 4 de Março (a 20 de Março, data do Memorial, ainda se ignorava que Filipe II receberia a embaixaoa). No braço do clero, como os prelados Teotónio Bragança e o bispo de Miranda, anticastelhanos, considerassem uma afronta a abusiva intromissão do rei católico nos assuntos portugueses, os restantes membros acabaram por compor esta resposta dúbia: que, dissolvidas as Cortes, nenhum valor jurídico teria o que pudessem decidir; contudo, fiados nas grandes virtudes de Filipe II, aguardavam a resposta que lhes trariam os embaixadores portugueses. No braço da nobreza também se ouviram protestos contra a insolência de um monarca estrangeiro gue ousava dirigir-se à assembleia suprema de outro reino. No entanto, a sua resposta foi idêntica à do braço do clero.
Restava o braço popular. Foi o licenciado Rodrigo Vásquez, que também desempenhava funções de embaixador, quem lhe apresentou a carta de Filipe II. Apesar de oficialmente dissolvidas as Cortes, ainda se encontravam em Santarém muitos procuradores dos concelhos. Escutaram-no em profundo silêncio. Por fim, Febo Moniz limitou-se a declarar secamente que a Junta não tinha nenhuma resposta a dar. Com autorização dos governadores, as câmaras municipais de Lisboa, Coimbra e Évora receberam os emissários do monarca estrangeiro. Pois, apesar de no seu seio já alguns procuradores se encontrarem secretamenüe peitados, nenhuma entregou carta de adesão ou qualquer promessa de obediência ao sôfrego pretendente ao trono de Portugal. Não havia dúvidas de que ninguém se atrevia a entregar-lhe o reino. Se queria o trono, tinha de empregar a violência. O que, em despeito da desorientação dos portugueses, seria sempre contingente.

A repercussão internacional do problema português
Ainda com as Cortes de Santarém e Almeirim em actividade, a meados de Fevereiro, ou seja cerca de duas semanas depois da morte do cardeal-rei Henrique, os governadores escreveram ao papa Gregório XIII e a alguns soberanos cristãos, a participar-lhes o falecimento do monarca. Desejosos, porém, de passarem por muito atentos à defesa da independência de Portugal, tanto aos olhos de nacionais como de estrangeiros, e talvez para iludirem, também, os dois colegas de governo,João Telo Menesres e Jorge Almeida, arcebispo de Lisboa, que não se tinham vendido, aproveitaram o ensejo para pôr em foco a situação do reino que, faltando-lhe o rei natural, se quedava como que órfão e indefeso. Mas à rainha Isabel I de Inglaterra dirigiram-se num tom mais comovente, recordando-lhe as velhas alianças, quer políticas quer de sangue, que havia mais de dois séculos uniam as duas nações, e predindo-lhe, ante as claras ameaças de Filipe II, rápido auxílio para defesa da justiça.
Nesse período sombrio da história, meia Europa odiava a Espanha pelo domínio tirânico que exercia na Flandres, em grande parte da Itália, em regiões germânicas e pela ameaça que constituía para a França e as Ilhas Britânicas. Os mais poderosos desses reinos ameaçados tinham toda a conveniência em evitar que o rei católico aumentasse ainda mais o seu poder, absorvendo Portugal, que, além de lhe oferecer magnífica posição estratégica no Atlântico, lhe abria ainda mais largos caminhos para as riquezas da Ásia e do Brasil, no Novo Continente». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT