A
tradução de Xenofonte
A
Retirada dos Dez Mil e O Príncipe Perfeito
«(…)
Assim: A
sua pedagogia era morta, inexoravelmente morta. Mas a parte viva, que
representa a medula espinal da obra, seja o espírito de que está animado o
protagonista, a sua clarividência quanto ao poder das reacções morais, a sua
índole magnânima e a forma, em suma, de solucionar os problemas do
desentendimento humano, constituem uma lição para os políticos semi-bárbaros
dos nossos dias que apenas sabem resolvê-los pela brutalidade. (Xenofonte, 1952) Na avaliação feita dos princípios norteadores
da conduta ética, Aquilino acentua, no prefácio da edição de 1952, a grandeza dum soberano que soube
ser clemente com os povos batidos e dominados pelas armas. Salienta, por isso,
o contraste com os governantes da actualidade. Assim se poderão compreender
estas considerações desiludidas: A
verdade insofismável é que, no geral, os senhores que governam o mundo são do
pior que tem engendrado, do fim do Renascimento para cá, o ventre podre da
política. Eu não os queria para me gerir uma quinta. Tampouco daria licença que
fossem conselheiros dos meus filhos. A que letras e ciências comprovadas
pediram a sua disciplina mental, subsidiária da arte de governar? Ouviram
alguma vez falar da República de Platão, desta Kirou Paideia ou da
Lakedaimonion Politeia de Xenofonte? (Xenofonte, 1952)
Ao finalizar a apresentação da obra, Aquilino questiona-se ainda sobre a
missão do escritor e avalia o empreendimento realizado. Reconhece ter valido a
pena retirar aquele livro do limbo, sendo por isso o trabalho de tradução bem
mais do que um entretenimento benigno.
Dada a sua actualidade para os tempos modernos, não podia o livro permanecer
fossilizado sob a lava literária de vinte séculos. Por isso se dedicou a esta
empresa, embora com a sensação de que o
escritor português tem sempre diante de si duas tarefas: uma a de pensar como
todo e qualquer artífice das letras do orbe civilizado; outra a de ir
preparando a forma, dar curso ao seu estilo, o que exige tanto esforço, pelo
menos, como ao padeiro estender em porções a massa levedada.
A tradução de Cervantes: Dom Quixote e Novelas Exemplares
Ao contrário dos contextos circunstanciais que ditaram os
anteriores investimentos, a tradução de Dom
Quixote de la Mancha e das Novelas
Exemplares, de Miguel Cervantes, exigiu de Aquilino
prolongado investimento. No Dom
Quixote, já vertido anteriormente para a língua portuguesa, enfrentou a
tarefa de recriar uma obra-prima de outra época, introduzindo uma revitalização
idiomática e as suas inconfundíveis marcas estilísticas. Nas doze narrativas da
colectânea cervantina, investiu na primeira tradução portuguesa integral das
novelas. Ao enfrentar este desafio, o tradutor chega a questionar se valeria a
pena o empreendimento; mais, se tinha o direito de verter
para português um texto castelhano, quando a Espanha estava tão perto de nós por bifurcação do mesmo tronco. Contudo,
os idiomas tinham-se afastado tanto que reajustar
reciprocamente as obras da literatura, tendo em conta o temperamento e índole
respectiva, eis a tarefa do tradutor. O autor explica as razões que o
levaram a arcar com esse empreendimento: Para
melhor me convencer de que o meu pensamento não era uma desmesurada e tonta
fantasia, tendo-se-me oferecido o ensejo de traduzir D. Quixote de la Mancha,
pus-me a fazê-lo com minuciosa atenção, desfiando-o frase por frase, pensamento
por pensamento, e, em seguida, as Novelas Exemplares. O melhor processo
de me integrar nos segredos estruturais do autor, reconhecer-lhe os defeitos,
sentir como eram delineadas as personagens, apreendendo a sua irradiação
metaplástica, seria este. Assim, filtrei pela minha pena tudo o que passara
pelo cérebro de Cervantes, mas é claro, com o parti pris dum analista.
Suponhamos que demoli um edifício e tratei de o reconstruir nas suas linhas,
alçado e formas, pesando pedra por pedra na palma das mãos. E, isto feito,
pareceu-me que teria alguma razão em julgar que não exorbitara de todo no meu
conceito.
Estando nesta altura já bem vincada a língua literária de Aquilino,
ter-se-ão sobreposto as suas opções estilísticas. Seria possível traduzir as
obras, adaptando-as ao idioma
português, aos seus referentes culturais e inclusivamente aos seus idiolectos?
Para isso, nem seria necessário diluir as marcas idiossincráticas do autor. E
não poderia o trabalho de tradução enriquecer a própria obra, na perspectiva do leitor português?
Era preciso encontrar um correspondente idiomático que estivesse à altura de
uma das obras maiores das letras universais. E nesta matéria, poucos como
Aquilino estariam em condições de fundir o erudito e o popular e de preservar a
idiossincrasia cervantina. O próprio escritor reflecte sobre o papel do
tradutor, quando pondera: Um escritor que
traduz outro abdica da personalidade, que é o principal timbre, se é escritor a
valer, da sua arte. Acontece-lhe como ao alferes que perdeu a bandeira. Mas,
repito, eu traduzi D. Quixote com o objectivo didascálico de o estudar, para
mais numa hora em que nos estão vedadas as fontes da originalidade, se a linfa
é outra que não a das bicas a que todos enchem o cântaro. Mas, devo declará-lo,
entreguei-me a este labor, menos por furtar-me ao abraço de Caliban do que com
o escopo bem assente de examinar a tessitura íntima da composição de Cervantes,
com a secreção do pensamento (...) É isso que me traz ao proscénio público a
expressá-lo, uma vez que adquiri esse direito desde que pretendi nacionalizar,
digamos, o engenhoso fidalgo e o escudeiro fiel». In Henrique
Almeida, Tradução ou Adaptação? A versão de Aquilino Ribeiro de Autores
Clássicos, Universidade C. Portuguesa, Viseu, Revista Máthesis nº 15, 2006.
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