quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Fogos. 1935. Prosas Líricas. Marguerite Yourcenar. «… conter verdades entrevistas muito cedo, mas que, de seguida, toda a vida não foi demasiada para tentar reencontrar e autenticar. Este baile de máscara foi uma das etapas de uma tomada de consciência»

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«(…) O importante é tentar demonstrar nestes jogos (onde, com efeito, o sentido de uma palavra, joga com a sua montagem sintáxica), não uma forma deliberada de afectação ou um gracejo, mas sim, como no lapsus freudiano e nas associações de ideias duplas ou triplas do delírio e do sonho, um reflexo do poeta, a contas com um tema particularmente rico, para ele, de emoções ou de perigos. Num trabalho meu, e o mais afastado possível de qualquer procura de estilo, e com maior razão ainda de qualquer ironia estilística, foi espontaneamente, sem ver que daí resultaria um calemburgo, que dei ao carcereiro da prisão onde agoniza o herói do livro, o nome de Hermann Mohr. Por muito que eu diga (o que, no entanto, é em princípio verdade) que uma compilação de poemas sobre o amor não necessita de comentários, sei que parece que procuro recusar o obstáculo ao tratar tão longamente de características estilísticas ou temáticas, ao fim e ao cabo secundárias, e ao passar em silêncio a experiência passional que inspirou este livro. Mas, além de sentir o ridículo de comentar demasiado longamente uma obra que desejaria que nunca fosse lida, não é este o local para examinar se o amor total por um ser particular, com tudo o que comporta de risco para si e para o outro, de inevitável burla, de verdadeira abnegação e humildade, mas igualmente de violência latente e de exigência egoísta, merece ou não o lugar exaltado que os poetas lhe deram.
O que parece evidente, é que esta noção do amor louco, por vezes escandaloso, e no entanto imbuído de uma espécie de virtude mística, não pode já subsistir senão associada a uma qualquer forma de fé na transcendência, ainda que apenas no seio da pessoa humana, e que uma vez privada do suporte de valores metafísicos e morais hoje desdenhados, talvez porque os nossos predecessores abusaram deles, o amor louco depressa deixa de ser outra coisa que um jogo vão de espelhos ou uma triste mania. Em fogos onde eu apenas pensava glorificar um amor muito concreto, ou talvez exorcizá-lo, a idolatria do ser amado associa-se muito visivelmente a paixões mais abstratas, mas não menos intensas, que por vezes prevalecem sobre a obsessão sentimental e carnal: em Antígona ou a escolha, a escolha de Antígona é a justiça; em Fédon ou a vertigem, a vertigem é a do conhecimento; em Maria Madalena ou a salvação a salvação é Deus. Não há aqui sublimação, como pretende uma fórmula decididamente infeliz, e insultante para a própria carne mas sim percepção obscura de que o amor por uma dada pessoa, por muito intenso, não é muitas vezes senão um belo acidente passageiro, menos real em certo sentido do que as predisposições e as escolhas que o antecedem e lhe sobreviverão. Através do ímpeto ou da desenvoltura inseparáveis deste género de confissões quase públicas, alguma passagens de fogos parecem-me hoje conter verdades entrevistas muito cedo, mas que, de seguida, toda a vida não foi demasiada para tentar reencontrar e autenticar. Este baile de máscara foi uma das etapas de uma tomada de consciência». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.

Cortesia Difel/JDACT