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O importante é tentar demonstrar nestes jogos (onde, com efeito, o sentido de uma
palavra, joga com a sua montagem sintáxica), não uma forma deliberada de
afectação ou um gracejo, mas sim, como no lapsus
freudiano e nas associações de ideias duplas ou triplas do delírio e do
sonho, um reflexo do poeta, a contas com um tema particularmente rico, para
ele, de emoções ou de perigos. Num trabalho meu, e o mais afastado possível de
qualquer procura de estilo, e com maior razão ainda de qualquer ironia
estilística, foi espontaneamente, sem ver que daí resultaria um calemburgo, que dei ao carcereiro da
prisão onde agoniza o herói do livro, o nome de Hermann Mohr. Por muito que eu
diga (o que, no entanto, é em princípio verdade) que uma compilação de poemas
sobre o amor não necessita de comentários, sei que parece que procuro recusar o
obstáculo ao tratar tão longamente de características estilísticas ou
temáticas, ao fim e ao cabo secundárias, e ao passar em silêncio a experiência
passional que inspirou este livro. Mas, além de sentir o ridículo de comentar
demasiado longamente uma obra que desejaria que nunca fosse lida, não é este o
local para examinar se o amor total por um ser particular, com tudo o que
comporta de risco para si e para o outro, de inevitável burla, de verdadeira
abnegação e humildade, mas igualmente de violência latente e de exigência
egoísta, merece ou não o lugar exaltado que os poetas lhe deram.
O
que parece evidente, é que esta noção do amor louco, por vezes escandaloso, e
no entanto imbuído de uma espécie de virtude mística, não pode já subsistir
senão associada a uma qualquer forma de fé na transcendência, ainda que apenas
no seio da pessoa humana, e que uma vez privada do suporte de valores
metafísicos e morais hoje desdenhados, talvez porque os nossos predecessores
abusaram deles, o amor louco depressa deixa de ser outra coisa que um jogo vão
de espelhos ou uma triste mania. Em fogos onde eu apenas pensava
glorificar um amor muito concreto, ou talvez exorcizá-lo, a idolatria do ser
amado associa-se muito visivelmente a paixões mais abstratas, mas não menos
intensas, que por vezes prevalecem sobre a obsessão sentimental e carnal: em
Antígona ou a escolha, a escolha de Antígona é a justiça; em Fédon ou a vertigem,
a vertigem é a do conhecimento; em Maria Madalena ou a salvação a salvação é
Deus. Não há aqui sublimação, como pretende uma fórmula decididamente infeliz,
e insultante para a própria carne mas sim percepção obscura de que o amor por
uma dada pessoa, por muito intenso, não é muitas vezes senão um belo acidente
passageiro, menos real em certo sentido do que as predisposições e as escolhas
que o antecedem e lhe sobreviverão. Através do ímpeto ou da desenvoltura inseparáveis
deste género de confissões quase públicas, alguma passagens de fogos
parecem-me hoje conter verdades entrevistas muito cedo, mas que, de seguida, toda
a vida não foi demasiada para tentar reencontrar e autenticar. Este baile de máscara foi uma das etapas
de uma tomada de consciência». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions
Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.
Cortesia
Difel/JDACT