Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) O passo não tem necessariamente uma significação objectiva: a
personagem não seria afastada daquele lugar nem pela Justiça nem pela Força.
Ou estariam efectivamente presentes na representação o juiz de Abrantes (a
que propósito!) e o porteiro dos Infantes?
Argumento
de ordem métrica: a Obra da Geraçã humana apresenta três estrofes
diferentes, o que nos situa sem dificuldade na rica metrificação vicentina. 75%
dos versos do Auto seguem o esquema ABc
ABc (as maiúsculas indicam os
versos acentuados na 7.ª sílaba, as minúsculas o quebrado, acentuado na 3.ª ou 4.ª sílaba). No conjunto do
teatro português do século XVI, esta estrofe só se encontra com representação
significativa na obra de Gil Vicente. 11,5% dos versos obedecem ao esquema ABBAACCA, que somente se encontra no
primeiro Auto das Barcas, sem exemplo no teatro não vicentino. 13,5 % de
versos com o modelo ABBAa CCAc não se encontram sequer em Gil Vicente,
o que seria mais uma razão para lhe atribuir a autoria, pois só ele soube
utilizar com mestria tal diversidade de ritmos. Révah considera de valor
decisivo estes argumentos de ordem métrica: a Obra da Geraçã humana só
pode ser de Gil Vicente, e temos de convir em que de facto se trata de razões
ponderosas. Nos domínios do vocabulário, da fraseologia e da estilística, as semelhanças
com as obras de Gil Vicente são tais que Révah reconhece a necessidade
de remeter o leitor para a edição anotada que nesse tempo preparava e que,
tanto quanto sabemos, não pôde infelizmente concluir. Recorda, no entanto, dois
exemplos que considera elucidativos. No diálogo entre os diabos, diz Abiram:
Demando aa puridade
que me diga a verdade
se a de ser das nossas bandas
este abade.
Abade, forma grosseira de designar Adão, só se encontra em Gil
Vicente. Cita dois exemplos, um do Auto da Cananeia, outro do Clérigo
da Beira. O segundo exemplo refere-se ao uso da palavra doneguil, usada pelo lavrador Joam d’Acenha, que permitiu
corrigir o erro de imprensa deneguil do
segundo Auto das Barcas. Trata-se de um vocabulário correspondente ao
antigo espanhol doñeguil. No estudo
da técnica teatral enriquece-se, segundo Révah, a atribuição do Auto
a Gil Vicente, com argumentos considerados decisivos. Começa pelo
estudo do prólogo do Auto.
Chama a atenção para o facto importante de nele não aparecer, como em Gil
Vicente também se não encontra, o Representador,
personagem frequente no teatro pós-vicentino.
Em compensação, certos elementos do prólogo da Obra
da Geraçã humana apresentam semelhança com passos de obras de Gil
Vicente. Por exemplo: o lavrador Gil
picote considera os espectadores da representação como convivas de uma
boda:
A bofee, que Deos mantenha
er assim todos e todas
que sedes naquestas vodas,
bõa Pascoa que vos venha!
enquanto o pastor Bras, do Auto
da Fé, exclama ao entrar em cena:
Benito, aquí estaa la boda.
outra semelhança: Joam d’Acenha,
ao entrar, esquece a cortesia devida à assistência, tal como os dois pastores, Bras e Benito do Auto da Fé:
que no hizimos los dos
revellencia quando entramos.
Exemplo também esclarecedor é a intervenção do Anjo, ao explicar aos dois rústicos o tema da arremedaçam. Révah recorda que é igualmente um Anjo a recitar o prólogo do Breve Sumário da História
de Deus, e disto há um só exemplo no teatro espanhol do século XVI, mas
nenhum outro no teatro português quinhentista». In Justino Mendes de Almeida,
Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História,
Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.
Cortesia da Academia P. de História/JDACT