Uma
aventura Lliterária
«No
casarão de S. Francisco havia um exemplar, considerado único, do Amusement
Périodique, par le Chevalier d’Oliveyra, Londres MDCCLI. Tudo leva a
crer que Oliveira Martins o tivesse compulsado, colhendo, o seu tanto de
arrepêlo, um ou outro dado pejorativo com que, ao compor a História de Portugal,
pretendeu formular a tese da irremissível decadência do povo português. Mais
tarde, no leilão da livraria Fernandes Tomás, foram postos em hasta dois tomos
da obra, quando consta de três, adjudicados por seis libras a Camilo Castelo
Branco. Seis libras ao tempo eram uma mancheia de dinheiro, provando o empenho
que o romancista tinha em adquirir o livro, e a sua raridade. Aproveitou-se dele,
salvo pequenas achegas perdidas por cem mil páginas, na composição do Judeu.
Em verdade, foi a partir dessa data que o livro passou a ter uma tal ou qual
notoriedade e com o livro o autor debaixo da designação de Cavalheiro de Oliveira. Mas que ideia, cavalheiro! Termo híbrido,
de importação espanhola, mais de uso nas alfurjas do Ferregial, entre as horizontais
e seus clientes, do que no cursivo da língua, dir-se-ia que por acinte ou em
vista ao entono da personagem, como alcunha, lho aplicou o mestre. Se por um lado
o termo indica o homem bem educado, ou a sua chalaça, por outro, regendo a
palavra indústria, define o meliante de alto bordo. O que não significa é o que
Oliveira era de facto: titular do primeiro
grau da Ordem de Cristo e que ele, à falta de brasões, adoptou nas embófias
de megalómano sob a forma exclusiva de nome próprio, 'quando se usava e usa
apenas como apanágio de distinção ou se faz alarde de honrarias. O conde de
Tarouca referia-se-lhe com desdenhoso sobrecenho: Oliveira, que ridiculamente se denomina
de Cavaleiro de Oliveira... Todavia, se em Portugal cavaleiro de Cristo
era apenas uma mercê, em Viena de Áustria, espada no talim, farda, bigodes
calamistrados, pernas arqueadas sobre o jarrete, era como um margrave este
jovem senhor do Ocidente.
Pela aragem se tira a carruagem. Em afidalgamento
tão anómalo se cifra a índole deste homem, bicho raro, aventureiro que tomou a vereda
escandalosa e iconoclasta em face da inquebrantável ortodoxia nacional, sujeito
de singularidades, graças ao quê, mais do que pelas letras, se evidenciou e se
tornou motivo de reparo e especulação. Foi cedendo a este móbil que em 1921-22,
o director da Biblioteca Nacional, Jaime Cortesão, me propôs fazer o
estudo e versão de textos seleccionados do Amusement e um ensaio biográfico do
autor. Eu tinha da matéria escassa notícia, como aliás toda a gente; Barbosa,
que manteve relações epistolares com o Cavaleiro, além de sucinto, cinge-se
à sua vida literária. Mediante as referências pessoais, sempre à flor da pena
dum egoísta como ele era, conheciam-se-lhe as efemérides de maior relevo, os
pegões da ponte. Mas o molecular, que na história dos indivíduos é o que mais
interessa, ignorava-se absolutamente. Quem
era? Qual o seu estofo de
cidadão? Qual o segredo e
dinâmica de avatares que o conduziram dum meio crasso de beatério, bentinhos e
procissões, até o recinto luterano, onde se ergue a conclamar contra o credo
católico que bebera de leite? Como
descobrir na noite envolvente o fantasma desvanecido do incréu?
Reservei
a minha resposta e fui ler o Amusement, as Cartas, as Mémoires,
do Cavaleiro; mergulhei em todas as possíveis fontes; procedi a uma
minuciosa e paciente rebusca de informes, e disse a Jaime Cortesão que,
muito obrigado, mas renunciava ao encargo. Raul Proença, director dos
Serviços Técnicos da B. N., o homem construtivo que até certo ponto chefiava o
movimento de renovação político-filosófico que, partindo daquela casa, se
estava a operar no seio da República, idosa apenas de uma década de anos,
combateu por todos os modos a minha desistência. Era pertinaz a sua dialéctica
e obsessivamente tão cheia de aliciações como de recursos suasórios. Travou-se ali a batalha de Jacob com o anjo.
Claro, Jacob era eu». In Aquilino
Ribeiro, Abóboras no Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand, Lisboa,
1955.
Cortesia
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