«Assim que se ultrapassa a ironia
geral da situação, percebe-se que matar um tipo dentro do seu próprio ginásio tem
muito a seu favor. O alvo era um yakuza,
um fanático da musculação chamado Ishihara que treinava todos os dias num ginásio
do qual era proprietário em Roppongi, um dos bairros de diversões de Tóquio. O Tatsu
dissera-me que a morte dele tinha de parecer provocada por causas naturais,
como sempre, portanto fiquei contente com a possibilidade de trabalhar num espaço
onde não era, nem de perto, nem de longe, impensável que alguém esticasse o pernil
com um aneurisma fatal provocado pelo esforço, ou tivesse o azar de cair em cima
de uma barra de aço, ou de sofrer qualquer outro acidente trágico enquanto usava
um dos complicados aparelhos de exercício. Talvez uma dessas eventualidades viesse
inclusive a ser imortalizada nos avisos que os advogados especializados em direito
comercial insistiriam em colocar na próxima geração de equipamento de ginásio informando
o público de mais uma utilização contra-natura que não era pretendida para o dito
aparelho e pela qual não poderia ser imputada ao fabricante qualquer responsabilidade.
Ao longo dos anos o meu trabalho transformou-me no anónimo laureado com dois
encómios jurídicos dessa laia: um deles numa ponte sobre as águas poluídas do rio
Sumida, onde determinada figura política se afogou em 1982 (Atenção. Não Trepar Para Cima Do Corrimão); outro datado
de uma década mais tarde, criado na sequência da electrocussão de um banqueiro
invulgarmente diligente, que aparece hoje nas embalagens de secadores de cabelo
(Atenção. Não Utilizar Enquanto Toma Banho).
O ginásio também era um local conveniente
por eu não me ter de preocupar com as impressões digitais. No Japão, onde a escolha
da indumentária é como que um passatempo nacional, um halterofilista fazer exercício
sem luvas estilosas e almofadadas é tão improvável como um político aceitar
subornos em cuecas. Era o início de uma Primavera amena para Tóquio,
prometendo, segundo se dizia, uma bela temporada de cerejeiras em flor, e onde,
senão num ginásio, poderia um homem de luvas ter passado despercebido? No meu
ramo, metade do trabalho passa por não dar nas vistas. As pessoas comunicam sinais
através da linguagem corporal, a maneira de andar, o vestuário, a expressão
facial, o porte, a atitude, o discurso, os maneirismos, que nos dizem de onde
vêm, o que fazem, quem são e, o mais importante de tudo, se estão bem integradas em determinado meio. Porque se uma pessoa não
parecer bem integrada, é topada pelo alvo e, a partir daí, não consegue aproximar-se
suficientemente dele para arrumar o assunto como deve ser. Ou é apanhada pelo
raro polícia incorrupto e ter de dar satisfações à justiça. Ou uma equipa de contra
vigilância repara nela e, então, parabéns!, o assassino passa a ser o alvo.
Por
outro lado, se se tiver atenção, começa-se a perceber que a identificação de
sinais é uma ciência, e não uma arte. Observa-se, imita-se e assimila-se. Mais cedo
ou mais tarde, consegue-se seguir alvos diferentes em ecossistemas sociais diferentes,
permanecendo-se anónimo em todos eles. Antigamente não me era fácil manter o
anonimato no Japão, numa fase em que a minha ascendência estava documentada em
registos abertos ao público e era motivo de provocações no recreio. No entanto,
hoje ninguém daria pelos traços caucasianos na minha cara, a não ser que estivesse
avisado de que estão lá. A minha mãe americana não se teria importado com isso.
Sempre quis que eu me integrasse no Japão e ficou satisfeita por as feições nipónicas
do meu pai terem prevalecido naquele confronto genético inicial pelo predomínio.
E a operação plástica a que me submeti quando voltei ao Japão, depois da minha temporada
com as Forças Especiais americanas no Vietname, completou em grande medida a obra
que o acaso e a natureza tinham iniciado. A história que os meus sinais contariam
ao yakuza era simples. Só me tinha começado
a ver no ginásio há pouco tempo, mas era nítido que eu já estava em forma. Portanto
não era um tipo de meia-idade que tinha decidido dedicar-se à musculação para tentar
recuperar o físico perdido depois da faculdade. A explicação mais provável para
isso seria que eu trabalhava para uma empresa que me transferira para Tóquio, e,
tendo em conta que me tinham pago alojamento perto de Roppongi, talvez em Minami-Aoyama,
ou Azabu, devia ser uma pessoa razoavelmente importante e bem remunerada. O facto
de, pelos vistos, me dedicar à musculação nesta fase da vida provavelmente implicava
que tinha casos com mulheres mais novas, para quem um físico jovem talvez aliviasse
as inevitáveis consequências emocionais de dormirem com um homem mais velho naquilo,
que, no fundo, seria pouco mais do que uma troca de sexo e da ilusão da imortalidade
por carteiras Ferragamo e as outras moedas
de troca implícitas em tais situações. Tudo isso seria compreensível e até respeitável
para o yakuza». In Barry Eisler, O Quinto
Mandamento, 2004, tradução de Luís Coimbra, Saída de Emergência, 2011, ISBN
978-989-6337-304-7.
Cortesia
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