«(…) Vim tamanhinha para este reino. Tão menina, tão
inocente! Meu sogro, el-rei Dinis I, que foi o maior poeta do seu tempo, deslocou-se
a Alcanises para estabelecer a paz com Castela, com meu irmão, o rei
Fernando, o quarto de nome, e aí, nessa terra quase fronteiriça, se definiram
as fronteiras dos nossos territórios. Eu estava na corte. Tratava-se de preparar
a paz e dois casamentos para a cimentar: o meu e o da filha d’el-rei Dinis I e
da santa rainha que veio de Aragão, dona Constança, que foi rainha em Castela.
Foi em 1335, em Setembro. Ah, dona
Doce, eu nascera apenas há quatro anos na grande sala da alcáçova em Toro, da
rainha dona Maria de Molina… Quando penso que nem o rosto dela me sobrou na
memória! Nem de meu pai, Sancho, a quem os povos apelidaram de o Bravo, como ao nosso senhor e rei
Afonso que também muito vos estima! Não vos envergonheis, dona Doce! Corastes como
uma romã madura! É verdade. Ele ama tudo o que eu amo, por isso este espanto
agora de o saber decidido a decepar do seu belo colo de garça a cabeça da amada de meu filho… Que Deus nos
ajude e àquela pobre criança'
Minha ama nessa altura não veio, apesar de me acompanharem
três carroças de gente com minhas damas para a minha futura casa. O meu
desgosto era uma ferida aberta. Eu chorava. Sabeis como é. A Aldonça fazia-me
falta, mas o marido, beberrão e bruto, fora castigado pelo rei meu irmão por
tentar roubar uma serva das cozinhas e mandado para os arranjos de restauro e
da horta de um convento, e ela, coitada, enclausurada perto. Eu chorava de dor,
saudade, agarrada a Fernando, como dona Constança à mãe e ao pai. A rainha de
Portugal, dona Isabel, apenas com vinte e sete anos, acariciou-me, pousando seu
olhar terno e luminoso no meu, afagou-me o rosto branco lavado de lágrimas,
pegou-me ao colo e trouxe-me quase todo o caminho de regresso. Solucei até que
o cansaço me fez dormir, o dedo polegar na boca e o rosto enterrado no seu
peito redondo e jovem, e isso recordo na perfeição, aquela voz clara, com o
sotaque de Aragão, mas muito suave: … dorme,
minha pequenina. Dá-me a outra mãozinha. O medo acabou. Vou ser a tua mãe.
Depois de muitos anos (depois de mulher e casada) quantas vezes fui eu a agarrar-lhe
a mão para a encorajar! E ainda o faço em espírito embora no seu hábito de
Clarissa ela se julgue liberta dos males do mundo, no seu túmulo de Santa Clara.
E digo isto porque ela assiste lá em cima no plano aonde subiu a tudo o que nos
liga ou ligou. Recordo-me da sua voz linda quando me cantava para me adormecer
e cada vez a sentia mais pura e santa, como deve ser a voz dos anjos, porque a
nossa voz é um instrumento que se aperfeiçoa e se produz, reproduz, se renova
todos os dias, tal como o Sol, as estrelas que parecem morrer e renascem na pureza
dos céus que o Senhor criou para a Eternidade.
Pois, minha querida, para o Tratado, eu com dona Constança
fomos moeda de troca, para a paz também entre os dois reinos, pois, ao contrário
do sábio Afonso X, meu pai pretendera a guerra com Portugal a ponto de el-rei
Dinis I, para se defender, invadir o reino vizinho com o apoio tácito do
monarca de Aragão. E mais uma vez, dona Isabel, com quem se matrimoniara em 1319, conseguiu as conversações e a
paz, agora com meu irmão. Ela teve por destino ser sempre a mensageira da paz
entre os reinos, o marido e o irmão, o filho, meu rei e Senhor, e os irmãos...
Já lá iremos, já lá iremos. Penso que a espertina nos tomou e não vamos dormir
esta noite! Vós ris. Tenho razão. Vossos olhos parecem os de um cuco esperto! Pois
Afonso esperou em Trancoso o nosso regresso. Tinha seis anos, um menino que
adorei desde que o vi. Fixara-se a fronteira com leves excepções no Alentejo e
dona Isabel regressava feliz. Perdera a filha amada para o reino vizinho, mas
trazia outra, eu, dona Doce, para sempre». In Seomara Veiga Ferreira, Inês de Castro, A
Estalagem dos Assombros, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN
978-972-23-3716-8.
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