Matilde
«Tenho todo o tempo do mundo,
pensou, pousando vagarosamente a chávena de chá, quase vazia. Todo o tempo do
mundo, repetiu. Uma orla imperceptível vestindo a madrugada, uma colcheia
perene, quase dourada, uma gaiola saltitante, duas estrias espreitando uns
seios lânguidos, e uma mesa de jardim com o mar atrás, muito bravo ou muito
quieto, cheio de luz ou envolto em bruma, rente ao chão ou galgando tudo, mas
àquela hora muito manso, na falésia que se fecha a tudo o que não lhe seja
intrínseco. Todo o tempo do mundo, e sorriu com uma mal disfarçada ironia. Tudo
me passando pelas mãos, tão célere, escorrendo-me entre os dedos como se estivesse
entornando um frasco de geleia, ou aberto desastradamente uma torneira que depois
não pára nunca.
Todo o tempo do mundo, repetiu de
novo para si própria, como num murmúrio. Que partida do destino! Dar-me assim esta
sensação tão enganosa, no preciso momento em que tomo consciência que tudo se me
escapou por entre os dedos, quase sem disso me dar conta. Todo o tempo do
mundo! Matilde levantou-se, como se sacudindo as amarras, arrumou as folhas dispersas
na pasta quadriculada, e entrou em casa. Mais tarde acercava-se da cómoda com
urna mal disfarçada mágoa, e fazia à pressa uma mala mal enjorcada. A roupa interior,
os pijamas de seda e os de flanela, depois os casacos e as saias.
Febrilmente pegava na roupa e amontoava-a,
deixando a mala a transbordar, esticada. Por fim as fotografias, os frascos de maquillage, e os livros da mesinha de cabeceira.
Deixar tudo para trás, esquecer, no espaço de umas horas, os anos que perdera, partir
assim, como se sem destino e sem pena, num amontoado frágil e penoso das muitas
luas que passaram ao longe, por detrás de umas persianas sem conserto que não se
levantam nunca, muitas trotinetas desvairadas que rasgavam os céus sem serem
vistas, muitos passos de pessoas que não se avistaram nunca.
Todo o tempo do mundo, disse a meia
voz, como que para consigo mesma, não sabendo já se falava sozinha e sem se dar
conta, ou se mordia apenas as palavras tontas. Todo o tempo do mundo foi o que
ingenuamente pensei poder ter durante todos estes anos, como se o tempo para mim
não fosse parar nunca. Todo o tempo do mundo, como se o tempo fosse coisa que nos
pudéssemos dar ao luxo de ver escorrer por entre os dedos, em praias recatadas,
ou nas mais irregulares e prosaicas pedras da calçada de uma rua lisboeta.
Um
passo adiante, dois passos atrás imediatamente se lhe seguiam, num dolorido espanto
de tudo acontecer de maneira diversa da que eu queria. E o que depois fica é uma
culpa que nos corrói a alma e a come inteira, e a suga toda, e nos deixa
esquálidos e perplexos, paralisados e desconexos, numa dor aguda que nos irrompe
das entranhas, e nos esquarteja e estraçalha até à exaustão mais absoluta. E afinal
um sorriso bastaria, ou uma mão que se acerca, uma viagem que se planeia, uma
cumplicidade que brota, uma carícia que nos despenteia, um avião alado que de repente
pousasse no terraço do nosso prédio, e nos levasse com ele, sem hesitações nem
bilhetes de embarque, e muito menos destinos traçados para a vida inteira». In
Rita Cerdeiros, As Hortênsias Brancas e as Bicicletas, Fenda Edições, Lisboa,
1997, ISBN 972-918-449-6.
Cortesia
de FendaE/JDACT