domingo, 23 de agosto de 2015

As Hortênsias Brancas e as Bicicletas. Rita Cerdeiros. «Febrilmente pegava na roupa e amontoava-a, deixando a mala a transbordar, esticada. Por fim as fotografias, os frascos de maquillage, e os livros da mesinha de cabeceira. Deixar tudo para trás…»

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Matilde
«Tenho todo o tempo do mundo, pensou, pousando vagarosamente a chávena de chá, quase vazia. Todo o tempo do mundo, repetiu. Uma orla imperceptível vestindo a madrugada, uma colcheia perene, quase dourada, uma gaiola saltitante, duas estrias espreitando uns seios lânguidos, e uma mesa de jardim com o mar atrás, muito bravo ou muito quieto, cheio de luz ou envolto em bruma, rente ao chão ou galgando tudo, mas àquela hora muito manso, na falésia que se fecha a tudo o que não lhe seja intrínseco. Todo o tempo do mundo, e sorriu com uma mal disfarçada ironia. Tudo me passando pelas mãos, tão célere, escorrendo-me entre os dedos como se estivesse entornando um frasco de geleia, ou aberto desastradamente uma torneira que depois não pára nunca.
Todo o tempo do mundo, repetiu de novo para si própria, como num murmúrio. Que partida do destino! Dar-me assim esta sensação tão enganosa, no preciso momento em que tomo consciência que tudo se me escapou por entre os dedos, quase sem disso me dar conta. Todo o tempo do mundo! Matilde levantou-se, como se sacudindo as amarras, arrumou as folhas dispersas na pasta quadriculada, e entrou em casa. Mais tarde acercava-se da cómoda com urna mal disfarçada mágoa, e fazia à pressa uma mala mal enjorcada. A roupa interior, os pijamas de seda e os de flanela, depois os casacos e as saias.
Febrilmente pegava na roupa e amontoava-a, deixando a mala a transbordar, esticada. Por fim as fotografias, os frascos de maquillage, e os livros da mesinha de cabeceira. Deixar tudo para trás, esquecer, no espaço de umas horas, os anos que perdera, partir assim, como se sem destino e sem pena, num amontoado frágil e penoso das muitas luas que passaram ao longe, por detrás de umas persianas sem conserto que não se levantam nunca, muitas trotinetas desvairadas que rasgavam os céus sem serem vistas, muitos passos de pessoas que não se avistaram nunca.
Todo o tempo do mundo, disse a meia voz, como que para consigo mesma, não sabendo já se falava sozinha e sem se dar conta, ou se mordia apenas as palavras tontas. Todo o tempo do mundo foi o que ingenuamente pensei poder ter durante todos estes anos, como se o tempo para mim não fosse parar nunca. Todo o tempo do mundo, como se o tempo fosse coisa que nos pudéssemos dar ao luxo de ver escorrer por entre os dedos, em praias recatadas, ou nas mais irregulares e prosaicas pedras da calçada de uma rua lisboeta.
Um passo adiante, dois passos atrás imediatamente se lhe seguiam, num dolorido espanto de tudo acontecer de maneira diversa da que eu queria. E o que depois fica é uma culpa que nos corrói a alma e a come inteira, e a suga toda, e nos deixa esquálidos e perplexos, paralisados e desconexos, numa dor aguda que nos irrompe das entranhas, e nos esquarteja e estraçalha até à exaustão mais absoluta. E afinal um sorriso bastaria, ou uma mão que se acerca, uma viagem que se planeia, uma cumplicidade que brota, uma carícia que nos despenteia, um avião alado que de repente pousasse no terraço do nosso prédio, e nos levasse com ele, sem hesitações nem bilhetes de embarque, e muito menos destinos traçados para a vida inteira». In Rita Cerdeiros, As Hortênsias Brancas e as Bicicletas, Fenda Edições, Lisboa, 1997, ISBN 972-918-449-6.

Cortesia de FendaE/JDACT