quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Hastes sem Bandeiras. 1963. Yúlia Leonidovna Petrova. «… e que o seu nome está aureolado por alguma coisa de lendário. Subitamente, sinto-me perturbada. Anunciam-me a sua chegada. Espero. Os olhos sofredores da anciã que vi na revista, fitam-me…»

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«Quase nada sei sobre Portugal. Apenas tenho ante os meus olhos uma fotografia que vi algures numa revista: as grades muito negras de uma janela prisional, um perfil de cabelos grisalhos, rugas e o desespero estampado nuns enormes olhos femininos. Tudo isto, em conjunto, tem para mim o sentido concreto da palavra Portugal. (Em russo dizem Portugália). Dentro de instantes entrará um homem sobre o qual, tão-pouco, quase nada sei além de que lhe chamam Álvaro Cunhal, que é secretário-geral do Partido Comunista Português e que o seu nome está aureolado por alguma coisa de lendário. Subitamente, sinto-me perturbada. Anunciam-me a sua chegada. Espero. Os olhos sofredores da anciã que vi na revista, fitam-me. Parece-me, por um instante, que estou do outro lado, onde há liberdade. A mulher arrima-se às grades e, agora, grita, asfixia-se de ira e de dor... A porta abre-se. Entra um homem. Ao apertar fortemente a minha mão, diz-me: Saúde, camarada... Marmóreo, de cabelo branco, rosto viril, afectuoso, de olhar tranquilo. Nota-se calma no mover da cabeça, no movimento das mãos e na maneira como ele pega no cigarro que está fumando. Na sala também agora há calma, mas eu estou espectante: há muito tempo que conheço este homem. Vi-o em outros como ele; vi-o naqueles que com as suas mãos fazem a vida. Falamos sobre múltiplas e diversas coisas, por vezes sem sequência aparente; falamos como velhos camaradas para as quais bastam, frequentemente, duas palavras para que, sem mais explicações, reviva na nossa mente e só veja um quadro de cores conhecidas, um acontecimento ou ainda um rosto humano. Vejo como ensombrecem ou, pelo contrário, como cintilam os seus olhos, ouço a música da sua voz ora suave, ora brusca, enérgica, precisa, quando faz o balanço de um pensamento meditado, de há muito. Olho para ele quando se cala por um momento antes de responder a uma pergunta. Parece que nesse momento, na sua cabeça se imprime, instantaneamente, a reprodução de algo, e depois tal como na fotografia vejo nitidamente a sua pergunta e o que está por detrás dela, e também a resposta na qual nada ficou por dizer. Primeiramente, vejo apenas o homem admirável cuja presença, a voz, apenas, me dá um impulso, um torvelinho de sensações». In Francisco Ferreira, Chico da CUF, Álvaro Cunhal, Herói Soviético, edição do autor, distribuição d’O Século, 1976.

Cortesia d’O Século/JDACT