O
amigo da rainha
«(…) Despachadas as roupas, havia
ainda alguns objectos para arrumar; credo, amiga. Esta parte do palácio era
triste com a rainha aqui encerrada, as janelas sempre fechadas e a pobrezinha alumiada
por velas, mas sem ela torna-se assustadora. Vamos acabar depressa este serviço.
Ai, Dolores, a mim também me custa este trabalho. Também tens medo de fantasmas?
Não, mulher. Depois de tantos anos junto de Sua Alteza, não sei o que vai ser a
minha vida. Sempre vivi para a servir. E agora, enquanto estamos a guardar
todos os seus pertences, é que sinto verdadeiramente que ela morreu. É como se
eu própria a estivesse a matar. Valha-me a Virgem Santíssima! Aldonça, até me
deste um arrepio. Vamos acabar isto. Olha, vou dar-te aqueles livros de orações
que estão ali em cima. Dolores tomou vários livros das suas mãos, mas um caiu e
ela baixou-se para o apanhar. Viu então, num canto perto da cama da falecida,
um objecto estranho e pegou-lhe. Sacudiu-o e uma nuvem de pó espalhou-se pelo
ar. Que coisa é esta? Aldonça teve uma ligeira comoção. Era um boneco antigo de
que a rainha só se esquecera nos últimos meses de vida, talvez porque tivesse
ficado preso no colchão. Tinha-lhe sido oferecido havia mais de quarenta anos,
e ela sempre o conservara entre os seus pertences mais queridos, e sempre o
escondera quando Carlos ou seu neto Filipe a haviam visitado; guardava-o mesmo,
sempre que recebia na sua câmara o marquês de Denia, o governador de
Tordesilhas e seu carcereiro.
Isso é um boneco… Que é um boneco
de pano vejo eu. Mas tem um buraco em baixo. É porque este boneco pode ser usado
numa representação, em palco apropriado. Dolores observava atentamente o boneco.
Então isto serve para uma representação? Lembro-me agora de ter visto uns bonecos
assim numa festa na minha aldeia, quando era menina. O que não percebo é o que este
boneco representa. É um animal? Sim, minha amiga, é uma girafa. O que é isso? Nunca
vi nada parecido. Ó Dolores, a girafa é um animal que existe nas terras da Guiné,
de onde vêm os negros. E tem assim um pescoço comprido, como esta? Sim, é uma alimária
altíssima. E porque tinha a nossa rainha este boneco entre os seus pertences mais
queridos?
Olha, Dolores, tu só entraste ao
seu serviço há cinco anos, mas eu já a servi nos Países Baixos, quando ela era simplesmente
a duquesa da Borgonha. Estive com ela mais de cinquenta anos. Pois este boneco foi-lhe
dado por seu último grande amigo. E quem era esse seu amigo? O olhar: de Aldonça
buscou o horizonte que se estendia para lá da janela. Era um cavaleiro português.
Galante, grande lutador. Conheceu nossa rainha em Bruxelas, foi amigo do rei Filipe
e depois visitou-a a furto, aqui em Tordesilhas, enquanto foi vivo. Eram
apaixonados?» In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates,
2012, 978-989-644-184-5.
Cortesia de CL/TDebates/JDACT