«Ninguém me é
estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no
carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)
A morte da águia
«(…) Depois vem
Ptolomeu Ceraunos, meio-irmão da rainha, que por amor de um trono manchou as
mãos de sangue assassinando os sobrinhos, seus enteados, jovens vidas de
dezasseis e treze anos, enlevo da rainha Arsínoe II, acabando por perder a
vida de forma inglória, enredado na teia dos crimes que ele próprio tecera. E a
sarabanda espectral prossegue com Satyros, o general sem medo, que nas
noites do cão, em que Sothis de novo resplandece no firmamento anunciando a
inundação iminente do Nilo, se escapa do túmulo e busca na boca de
desconhecidas ocasionais o gosto dos beijos da sua amante. Numa grande casa
branca rodeada por um austero e alto muro abriga-se uma espaçosa sala com uma
única janela situada muito acima, onde os embalsamadores se dedicam à sua tarefa
de execução da beleza imortal. Ao longo das paredes encontram-se fixadas várias
mesas de pedra do tamanho do corpo de um homem. Reina um intenso odor a resinas
da Fenícia e betumes de Biblos. Nos cantos vêem-se alguns vasos de alabastro
repletos de objectos preciosos, amuletos, e também ouro, prata, pedaços de
lápis-lazúli, jaspe verde, cornalina, ametista e cristal. Lá ao fundo encontram-se
os recipientes de cinadrio e goma para dissolver as folhas de ouro destinadas a
pintura.
Tintas e
vernizes amontoam-se por toda a parte, e uma pequena mesa articulada exibe uma
infinidade de complicados objectos destinados a facilitar aos preparadores de
cadáveres o seu mester. A porta abre-se e assomam dois homens envergando roupas
leves de linho branco. Um terceiro que os acompanha aproxima-se da mesinha e
retira um ferro curvo destinado a extrair o cérebro do cadáver pelas narinas.
Em seguida o paraskhites irá proceder à costumeira incisão no flanco
esquerdo. Junto da mesa podem ver-se quatro magníficos vasos canópicos de alabastro finamente trabalhado. Mais tarde,
depois de quarenta ou mais dias mergulhado no tanque de natrão, o corpo ficará
pronto para o enfaixamento. Depois de
limpo e purificado com as trinta e seis diferentes substâncias requeridas, será
primeiro enfaixada a mão esquerda, na qual brilhará um anel; sobre as ataduras
figurará uma representação de Isis e de Hapi. Em seguida será a vez da direita,
com figuras de Rá e Amsu, depois os braços e finalmente os pés e as pernas,
previamente friccionados com os óleos sagrados e flores de anem. Horus, no seu
esplendor, adornará a perna esquerda, enquanto Anúbis velará na direita, e as
cavidades do corpo serão preenchidas com diversas substâncias aromáticas, tais
como mirra, de odor penetrante, usada na magia e na religião pelo menos durante
quatro mil anos.
Um médico real
vinha frequentemente observar o labor dos tarikbeutai, os
embalsamadores. Herófilo sentava-se a um canto, transportado de alegria pela
descoberta da máquina do corpo humano, a constituição do sistema nervoso, as
artérias, os tendões, e tomava notas em silêncio. Formado no rigor das ciências
exactas por Estratão de Lâmpsaco, discípulo de Aristóteles, Herófilo
trazia consigo uma clepsidra da qual jamais se separava; fazia questão de nada
escrever na sua Anatómica que primeiro não tivesse observado. Dizia-se que
a malograda Arsínoe I dera à luz os dois filhos de Ptolomeu Filadelfo assistida
por Herófilo, que lhe aplicara uma técnica de parto sem dor por ele descoberta.
Entusiasmados com os conhecimentos demonstrados pelos embalsamadores, outros
homens de saber vinham amiúde arrancar à morte os segredos da vida. Um deles
era Erasístrato, que talvez por esta razão sabia como ninguém o modo de
funcionar dos órgãos do corpo humano. Seria ele a operar o rei a um tumor que o
atormentava, poupando-o às terríveis dores que se seguiriam ao adormecê-lo com
um extracto de mandrágora. Os dois sábios ali se deleitavam em conjecturas,
perdidos no tempo, na vaga sensação de que o seu acto de pensar os fazia de
facto existir com os deuses. Reconheciam ambos o muito que deviam ao saber dos
egípcios, não apenas em matéria de conhecimento e uso de plantas curativas, mas
também no campo da anatomia. Não contente com a observação dos cadáveres, a
Erasístrato o rei permitiria mesmo a dissecção de homens vivos, criminosos
condenados à morte cedidos pelo monarca. A ética desta liberalidade régia iria
todavia tornar-se objecto de acesa discussão em toda a cidade de Alexandria,
mas não dera o médico provas da sua perspicácia e dedicação à causa real? Não
descobrira e informara o rei do amor do jovem Antígono pela sogra Estratónice,
conquistando com isto o favor de Ptolomeu?» In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de
Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial
Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.
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