Erguem-se
fantasmas
«(…)
Não houve referências aos outros filmes, os que tanta confusão ameaçaram provocar.
Suponho que nem são dignos de menção nestes dias de promiscuidade e permissividade.
Mas embora já me tivesse confrontado com tais memórias antes, a carta de Ursula
foi diferente. Foi a primeira vez em mais de 70 anos que alguém me associara aos acontecimentos, se lembrou
que uma jovem chamada Grace Reeves estivera em Riverton naquele Verão. Fez-me sentir
vulneráve1 de algum modo, discriminada. Culpada. Não. Fui intransigente. Aquela
carta não teria resposta. E assim foi. Algo estranho começou a suceder, contudo.
Memórias, há muito consagradas aos recantos escuros da minha mente, começaram a
escapar pelas frinchas. As imagens vinham à tona, inalteradas, como se toda uma
vida não tivesse decorrido entretanto. Assim, após as primeiras gotas hesitantes,
o dilúvio. Conversas inteiras, cada palavra, cada nuance; cenas reproduzidas como
num filme.
Surpreendi-me
a mim mesma. Ao passo que a minha memória recente foi roída pelas traças, o passado
distante parecia-me bem definido e nítido. Têm aparecido com frequência ultimamente,
esses fantasmas do passado, e surpreende-me constatar que não me incomodam tanto
como isso. Não tanto como supunha que o fariam. Na verdade, os espectros de que
passei a vida a fugir tornaram-se quase um conforto, algo que recebo de bom grado,
cuja chegada antecipo, como uma daquelas séries televisivas de que a Sylvia
está sempre a falar, apressando a sua ronda para poder vê-las na sala de convívio.
Tinha-me esquecido, suponho, que no meio da escuridão havia memórias coloridas.
Quando a segunda carta chegou na semana passada, com a mesma letra áspera no mesmo
papel suave, sabia que ia aceitar, iria visitar os cenários. Estava curiosa,
uma sensação que já não tinha há algum tempo. Não resta muito para nos despertar
a curiosidade quando se chega aos 98 anos, mas eu queria conhecer esta Ursula Ryan
que pretende trazê-los todos à vida novamente, que estava tão apaixonada pela sua
história. De modo que ditei uma carta, pedi à Sylvia que a remetesse pelo correio,
e combinámos um encontro.
A
sala de visitas
O meu
cabelo, que sempre teve uma cor desbotada, é agora de um branco sedoso e bastante
comprido. Além disso é liso, parece mais liso a cada dia que passa. É a minha única
vaidade, sabe Deus que não tenho muito mais de que me envaidecer. Deixei de
ter. Uso este corte de cabelo há bastante tempo, desde 1989. Sorte a minha, de
facto, que a Sylvia goste de o escovar com tanto carinho, de me fazer tranças todos
os dias. É muito mais do que lhe compete e sinto-me bastante grata. Preciso lembrar-me
de lho dizer. Perdi a minha oportunidade esta manhã, estava demasiado excitada.
Quando a Sylvia me trouxe o sumo, mal consegui bebê-lo. O fio de energia nervosa
que me perpassou toda a semana tornou-se um nódulo, da noite para o dia. A Sylvia
ajudou-me a experimentar um novo vestido cor-de-pêssego, que a Ruth me comprou
no Natal, e trocou-me os chinelos pelo par de sapatos de sair que normalmente
ficam no armário a ganhar pó. O couro estava rígido e a Sylvia teve de os forçar
para que servissem, mas tal é o preço da respeitabilidade. Sou demasiado velha para
adquirir novos hábitos e não suporto a tendência dos residentes mais novos para
gastar chinelos». In Kate Morton, O Segredo da Casa de Riverton, 2006, tradução de Vítor
Guerreiro, Porto Editora, Porto, 2008, ISBN 978-972-004-160-9.
Cortesia de PortoE/JDACT