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E foi maravilhoso ouvi-lo rir uma vez mais. Mas agora as suas palavras
tinham-me mergulhado numa impaciência, num desejo de estudar as suas
entrelinhas, de rever, não o meu livro (que para mim nunca teve qualquer
importância posto que nunca será publicado), mas a minha visão da cidade e dos
seus habitantes. Porque a minha Alexandria pessoal se tornou, neste isolamento,
tão cara como uma filosofia de introspecção, quase uma monomania. Sentia-me tão
comovido que nem sabia que dizer-lhe. Fique connosco, Balthasar... fique por
algum tempo... Partimos dentro de duas horas, disse ele, e acrescentou palpando
o maço de papéis: isto poderá provocar-lhe febre e visões. Excelente,
respondi-lhe, é justamente o que preciso. Nós somos todos criaturas reais,
disse ele, a despeito daquilo que você tentou fazer connosco, pelo menos
aqueles de nós que ainda se encontram vivos. Melissa, Pursewarden, esses nada
podem contestar porque estão mortos. Pelo menos é o que se pensa. É o que se
pensa. As melhores respostas vêm sempre do além-túmulo.
Sentámo-nos
e começámos a falar do passado mas com certo constrangimento. Balthasar já
tinha jantado a bordo e tudo quanto me foi possível oferecer-lhe foi uma taça
do bom vinho da ilha que ele saboreou lentamente. Mais tarde pediu-me para ver
a filha de Melissa, e conduzi-o através do caramanchão de loureiros até à
janela iluminada pelo fogo onde a vimos a dormir, muito bela, mamando
gravemente no dedo. Os olhos sombrios e cruéis de Balthasar enterneceram-se
enquanto a contemplava, de respiração suspensa. Um dia, disse ele em voz baixa,
Nessim quererá vê-la. Mais breve do que você julga. Começou já a falar dela, a
mostrar curiosidade. Com a idade sentirá necessidade da criança, não se esqueça
do que eu lhe digo. E citou em grego esta frase: No princípio os jovens, tal como a vinha, apoiam-se sobre os tutores
dos mais velhos, que sentem prazer em suportar sobre eles os dedos doces e
meigos; mais tarde são os velhos que se apoiam nos belos corpos dos jovens para
descer o rio da morte.
Conservei-me
calado. Agora era o próprio quarto que respirava, e não os nossos corpos. Você
tem vivido aqui na solidão, observou Balthasar. Mas numa esplêndida, numa
desejável solidão. Sim. Invejo-o sinceramente. E então o seu olhar surpreendeu
o retrato de Justine que Clea me tinha oferecido numa existência anterior. O
retrato que foi interrompido por um beijo, disse ele. Como é bom tornar a vê-lo,
como é bom! Sorriu. É como escutar uma frase musical que nos é querida, que
sabemos de cor, e que desperta uma emoção que se pode constantemente renovar,
que nunca nos falha. Não disse nada. Não me atrevia. Ele voltou-se então para
mim. E Clea?, disse por fim, na voz de quem se dirige a um eco. Respondi: não
tenho notícias dela há dois anos, ou mais. O tempo aqui não conta. Espero que
se tenha casado, que tenha ido para outro país, que tenha filhos e seja
conhecida como pintora..., tudo o que de melhor se lhe possa desejar. Balthasar
olhou para mim curiosamente e sacudiu a cabeça: não, disse ele, mas sem
acrescentar mais nada. Já passava bastante da meia-noite quando do meio das
oliveiras ocultas na treva subiram as vozes dos marinheiros que o chamavam.
Acompanhei-o à praia, triste por vê-lo partir tão depressa. Um escaler
esperava-o com um marinheiro aos remos. O homem disse qualquer coisa em árabe.
O mar primaveril estava tentadoramente tépido depois de um dia de sol
descoberto e, quando Balthasar entrou no escaler tomou-me a fantasia de
segui-lo nadando até ao navio ancorado a menos de duzentos metros da praia. Foi
o que fiz e fiquei a flutuar diante do costado para vê-lo subir a escada do
portaló enquanto içavam o escaler. Cuidado com a hélice, gritou-me ele. Afaste-se
antes do motor começar a trabalhar... Esteja descansado». In Lawrence Durrell, Quarteto de
Alexandria, 1958, Balthazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961,
Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT