quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «Na sua qualidade de médico atendera muitos membros da milícia que haviam solicitado os seus serviços. Tinha sido sempre tratado com respeito e afecto, e convinha não esquecer as relações que o Templo mantinha com os prestamistas do ‘Call’»

Cortesia de wikipedia

Barcelona
«(…) Porém, nas roupas de Guils não havia nada. Abraão sentou-se ao lado do cadáver e fez um esforço para se lembrar. Cerrou os olhos e viu Bernard na popa da nave, com o braço direito fortemente apertado contra o peito. Recordou os enérgicos passeios do homem, da popa à proa, da proa à popa, e de forma constante e repetida o gesto da mão esquerda roçando o peito, como se quisesse certificar-se de que uma coisa importante permanecia no devido lugar. Sim, tinha a certeza de que Guils transportava qualquer coisa valiosa para ele, mas em relação ao tempo que tinham estado embarcados Abraão chegava à conclusão de que ele estava preocupado com e segurança da sua bolsa, coisa muito comum neste tipo de travessias, em que as pessoas se encontravam rodeadas de tripulantes desconhecidos e, em muitos casos, propensas ao roubo. Ninguém havia roubado Guils aproveitando o estado dele ou pior alguém provocara esse estado a fim de o roubar. Ocasiões para o fazer não tinham faltado, uma vez que desde o momento do desembarque muita gente se aproximara do doente. A história ia tomando forma no espírito de Abraão... Guils tinha gritado um nome na sua agonia, Guillem, pedira-lhe que avisasse um tal Guillem, mas Guillem quê? Era um nome corrente que não lhe proporcionava qualquer pista. Tinha de agir com prudência, a intensa angústia de Bernard indicava que aquilo por que tinha morrido tinha grande importância e representava grande perigo. Abraão queria cumprir os seus últimos desejos, mas a informação era escassa, quase mínima. Após uns minutos de reflexão, o velho judeu tornou uma decisão, agarrou na capa e saiu de casa.
A tarde começava a cair Tinha de apressar-se, não podia arriscar-se a que fechassem o Portal del Castell Nuo e o impedissem de sair até à manhã seguinte. Graças a Deus, a Casa do Templo ficava muito perto e não levaria nem cinco minutos a chegar lá. Não encontrou ninguém conhecido. Àquela hora as pessoas costumavam recolher-se e as patrulhas de vigilância ainda aproveitavam os últimos instantes em alguma taberna, antes de começar a ronda da noite. A sua mente não parava de trabalhar, Guillem?... O mestre provincial chamava-se assim, Guillem Pontons, mas... seria realmente ele o homem a que Guils se referia? Teria de improvisar enquanto caminhava. Abraão tinha muito boas relações com os templários da cidade. Na sua qualidade de médico atendera muitos membros da milícia que haviam solicitado os seus serviços. Tinha sido sempre tratado com respeito e afecto, e convinha não esquecer as relações que o Templo mantinha com os prestamistas do Call. Ambas as partes beneficiavam com aquela relação e faziam excelentes negócios. Estacou de súbito, detendo o ritmo dos pensamentos. Tinha a sensação desagradável de que alguém o seguia, mas apenas conseguiu observar no meio da escuridão crescente, um jogo de sombras dispersas, quase imóveis. Era capaz de jurar que quando se voltara, a sombra de um homem alto de capa se movera atrás de si, desaparecendo em seguida e dissolvendo-se num canto escuro, como um reflexo. O silêncio era total, vazio de qualquer som.
Abraão estugou o passo, cingindo a capa ao corpo delgado. Um arrepio percorrera-lhe a espinha e tinha a certeza de que não era por causa do frio, era simplesmente medo. Reconheceu que estava assustado, muito assustado e demasiado velho para aquele tipo de experiências. Na penumbra, a poucos metros, reconheceu a imponente mole das torres do Templo e respirou aliviado; eles saberiam o que fazer e como agir. Uma sombra estranha desenhava-se num muro sem que luz alguma ajudasse a projectá-la. Parecia uma mancha da própria pedra, castigada pela chuva de séculos. Quando Abraão desapareceu pelo portão do Templo, uma brisa silenciosa arrancou a sombra da pedra, desvanecendo-a.

Guillem Montclar
Levantou-se do banco de pedra e voltou à janela. Precisamente seis passos, multiplicado pelas vinte ocasiões em que fizera o trajecto, dava cento e vinte assos. E como nas vezes anteriores, deitou uma olhadela ao exterior. Contemplou a torre do mosteiro de Sant Pere de les Puelles, conhecida por Torre dels Ocells. Aquele convento enorme dera vida a um bairro inteiro. Terras e moinhos, muitos moinhos perto das águas da corrente do Rec Condal. O moinho onde estava, propriedade do Templo, havia sido ponto de encontro de inúmeros encontros com Guils, porque era um dos seus lugares preferidos para tratar de assuntos delicados. Vais ver rapaz. Não passa pela cabeça de ninguém que dois malditos espiões como nós se juntem neste velho moinho! Além disso, como é nosso, fica tudo em família e ninguém nos virá incomodar pensando que somos membros do sector jurídico da ordem, enredados em algum preito com as freiras do mosteiro por um bocado de terra, como sempre, disse Guils irónico, ao ver a sua expressão perplexa da primeira vez que ali haviam ficado de se encontrar». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT