Cortesia de wikipedia
Barcelona
«(…) Porém, nas roupas de Guils não havia nada. Abraão
sentou-se ao lado do cadáver e fez um esforço para se lembrar. Cerrou os olhos
e viu Bernard na popa da nave, com o braço direito fortemente apertado contra o
peito. Recordou os enérgicos passeios do homem, da popa à proa, da proa à popa,
e de forma constante e repetida o gesto da mão esquerda roçando o peito, como
se quisesse certificar-se de que uma coisa importante permanecia no devido
lugar. Sim, tinha a certeza de que Guils transportava qualquer coisa valiosa
para ele, mas em relação ao tempo que tinham estado embarcados Abraão chegava à
conclusão de que ele estava preocupado com e segurança da sua bolsa, coisa
muito comum neste tipo de travessias, em que as pessoas se encontravam rodeadas
de tripulantes desconhecidos e, em muitos casos, propensas ao roubo. Ninguém
havia roubado Guils aproveitando o estado dele ou pior alguém provocara esse
estado a fim de o roubar. Ocasiões para o fazer não tinham faltado, uma vez que
desde o momento do desembarque muita gente se aproximara do doente. A história
ia tomando forma no espírito de Abraão... Guils tinha gritado um nome na sua
agonia, Guillem, pedira-lhe que avisasse um tal Guillem, mas Guillem quê? Era
um nome corrente que não lhe proporcionava qualquer pista. Tinha de agir com
prudência, a intensa angústia de Bernard indicava que aquilo por que tinha morrido
tinha grande importância e representava grande perigo. Abraão queria cumprir os
seus últimos desejos, mas a informação era escassa, quase mínima. Após uns minutos
de reflexão, o velho judeu tornou uma decisão, agarrou na capa e saiu de casa.
A tarde começava a cair Tinha de apressar-se, não podia
arriscar-se a que fechassem o Portal del Castell Nuo e o impedissem de sair até
à manhã seguinte. Graças a Deus, a Casa do Templo ficava muito perto e não
levaria nem cinco minutos a chegar lá. Não encontrou ninguém conhecido. Àquela
hora as pessoas costumavam recolher-se e as patrulhas de vigilância ainda
aproveitavam os últimos instantes em alguma taberna, antes de começar a ronda da
noite. A sua mente não parava de trabalhar, Guillem?... O mestre provincial
chamava-se assim, Guillem Pontons, mas... seria realmente ele o homem a que
Guils se referia? Teria de improvisar enquanto caminhava. Abraão tinha muito
boas relações com os templários da cidade. Na sua qualidade de médico atendera
muitos membros da milícia que haviam solicitado os seus serviços. Tinha sido
sempre tratado com respeito e afecto, e convinha não esquecer as relações que o
Templo mantinha com os prestamistas do Call.
Ambas as partes beneficiavam com aquela relação e faziam excelentes negócios.
Estacou de súbito, detendo o ritmo dos pensamentos. Tinha a sensação desagradável
de que alguém o seguia, mas apenas conseguiu observar no meio da escuridão
crescente, um jogo de sombras dispersas, quase imóveis. Era capaz de jurar que
quando se voltara, a sombra de um homem alto de capa se movera atrás de si,
desaparecendo em seguida e dissolvendo-se num canto escuro, como um reflexo. O
silêncio era total, vazio de qualquer som.
Abraão estugou o passo, cingindo a capa ao corpo delgado. Um arrepio
percorrera-lhe a espinha e tinha a certeza de que não era por causa do frio,
era simplesmente medo. Reconheceu que estava assustado, muito assustado e
demasiado velho para aquele tipo de experiências. Na penumbra, a poucos metros,
reconheceu a imponente mole das torres do Templo e respirou aliviado; eles
saberiam o que fazer e como agir. Uma sombra estranha desenhava-se num muro sem
que luz alguma ajudasse a projectá-la. Parecia uma mancha da própria pedra,
castigada pela chuva de séculos. Quando Abraão desapareceu pelo portão do Templo,
uma brisa silenciosa arrancou a sombra da pedra, desvanecendo-a.
Guillem Montclar
Levantou-se do banco de pedra e voltou à janela. Precisamente seis
passos, multiplicado pelas vinte ocasiões em que fizera o trajecto, dava cento
e vinte assos. E como nas vezes anteriores, deitou uma olhadela ao exterior. Contemplou
a torre do mosteiro de Sant Pere de les Puelles, conhecida por Torre dels Ocells. Aquele convento enorme
dera vida a um bairro inteiro. Terras e moinhos, muitos moinhos perto das águas
da corrente do Rec Condal. O moinho onde estava, propriedade do Templo, havia sido
ponto de encontro de inúmeros encontros com Guils, porque era um dos seus
lugares preferidos para tratar de assuntos delicados. Vais ver rapaz. Não passa
pela cabeça de ninguém que dois malditos espiões como nós se juntem neste velho
moinho! Além disso, como é nosso, fica tudo em família e ninguém nos virá
incomodar pensando que somos membros do sector jurídico da ordem, enredados em
algum preito com as freiras do mosteiro por um bocado de terra, como sempre,
disse Guils irónico, ao ver a sua expressão perplexa da primeira vez que ali
haviam ficado de se encontrar». In Núria Masot, A Sombra do Templário,
colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
Cortesia de Sicidea/JDACT