«Em
todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior
escondido». In Raul Brandão
«Por
entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir
rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas
largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava
acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto
sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama.
Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo
da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte,
os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados.
Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as
como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem
sangrar, uma agulha enfiada. Num movimento mais lento de rotação, deitou as
pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela
fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam
profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha
raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe. Contemplando
com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça
grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má
vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo
quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a
trunfa de cabelos manchados de sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele
tronco poderoso que as pernas mal suportavam. Procurou as calças e não deu com
elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou: Mariana! Eh, Mariana!
Onde estão as minhas calças? (Voz de dentro:) Já lá vai! Pelo modo de andar,
adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre
teve que esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à
porta: estão aqui. Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais
gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou: Não sei que fazes aos botões
das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho que passar
a pregá-los com arame... A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona. E era
tão franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de pensar que dissera um
gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e os poucos dentes que
lhe restavam. Recebeu as calças, vestiu-as sob o olhar complacente da mulher e
ficou satisfeito, agora que o vestuário lhe tornava o corpo mais proporcionado e
regular. Silvestre era tão vaidoso do seu corpo como Mariana desprendida do que
a Natureza lhe dera. Nenhum deles se iludia a respeito do outro e bem sabiam
que o fogo da juventude se apagara para nunca mais, mas amavam-se ternamente,
hoje como há trinta anos, quando do casamento. Talvez agora o seu amor fosse
maior, porque já não se alimentava de perfeições reais ou imaginadas.
Silvestre
foi atrás da mulher até à cozinha. Enfiou na casa de banho e voltou daí a dez
minutos, já lavado. Não vinha penteado porque era impossível domar a grenha que
lhe dominava (dominava é o termo) a cabeça, o lambaz do barco, como lhe
chamava Mariana. As duas tigelas de café fumegavam sobre a mesa, e havia na
cozinha um cheiro bom e fresco de limpeza. As faces redondas de Mariana
resplandeciam, e todo o seu corpo obeso estremecia e se agitava movendo-se na
cozinha. Cada vez estás mais gorda, mulher!... E Silvestre riu. Mariana riu com
ele. Duas crianças, sem tirar nem pôr. Sentaram-se à mesa. Beberam o café
quente em longos sorvos assobiados, por brincadeira. Cada um queria vencer o
outro no assobio. Então, que resolvemos? Agora, Silvestre já não ria. Mariana
também estava sisuda. Até as faces pareciam menos coradas. Eu não sei. Tu é que
resolves. Já ontem te disse. A sola está cada vez mais cara. A freguesia
queixa-se de que levo caro. É a sola... Não posso é fazer milagres. Sempre
queria que me dissessem quem é que trabalha mais barato que eu. E ainda se
queixam... Mariana deteve-o no desabafo. Por este caminho não resolviam nada. O
que era preciso era ver essa questão do hóspede. Pois é, fazia jeito.
Ajudava-nos a pagar a renda e, se fosse um homem sozinho e tu quisesses
encarregar-te da roupa, a gente equilibrava-se. Mariana escorripichou o café
adocicado do fundo da tigela e respondeu: Cá por mim, não me importo. Sempre é
uma ajuda... Pois é. Mas estarmos outra vez a meter hóspedes, depois de nos
vermos livres dessa cavalheira que se foi embora... Que remédio! Seja ele boa
pessoa... Eu dou-me bem com toda a gente, se se derem bem comigo. Experimenta-se
uma vez mais... Um homem só, que só venha dormir, é o que convém. Logo, à
tarde, vou pôr o anúncio. Mastigando ainda o último bocado de pão, Silvestre
levantou-se e declarou: bom, vou trabalhar. Regressou ao quarto e caminhou para
a janela. Afastou a cortina que formava um pequeno biombo que o isolava do
quarto. Havia um estrado alto e sobre ele a banca de trabalho. Sovelas, formas,
bocados de fio, latas de prego miúdo, retalhos de sela e pele. A um canto, a
onça de tabaco francês e os fósforos». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial
Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia
ECaminho/JDACT