Os
Rostos da História na História Augusta
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Em certos casos, a veracidade da História Augusta acha-se estabelecida
por outros testemunhos da época. Noutros casos, e com uma singular frequência,
os trabalhos dos historiadores modernos vieram posteriormente confirmá-la. As
reformas económicas e administrativas de Adriano foram atestadas por demasiados
textos epigráficos para que se possa acreditar que Espartiano, ou o biógrafo
que toma este nome, se tenha limitado, como houve quem dissesse, a oferecer do
reinado deste imperador uma pintura fantasista, copiada da imagem edificante do
governo de Augusto. As incontáveis estátuas e medalhas de Antínoo descobertas
do Renascimento até aos nossos dias confirmaram abundantemente a breve
referência feita por este mesmo Espartiano à dor excruciante de Adriano quando
da morte do favorito e às honras divinas prestadas à sua memória, a qual
correria o risco de passar, sem aquelas, pelo tipo da falsificação escandalosa
introduzida na biografia de um príncipe judicioso e recatado. Esse conto d'As
mil e Uma Noites que é a história de Heliogábalo contada por Lamprídio
parece hoje menos absurdo do que outrora, na sequência do nosso conhecimento
mais exacto dos cultos e costumes do Oriente; vislumbramos o sentido daquilo
que o cronista injuria sem o ter compreendido. Em suma, e apesar da longa lista
de documentos forjados, de asserções absurdas e de confusões de nomes, de datas
e de acontecimentos que ali podemos detectar, é menos no enunciado dos factos
do que na interpretação dada aos factos que florescem frequentemente na História
Augusta o erro e a mentira.
Em
nove de cada dez vezes, a mentira é obviamente ditada pelo ódio sectário ou
pela bajulação do príncipe no poder. O retrato de Galiano não passa de um
libelo, inspirado pelo rancor senatorial; o de Cláudio, o Gótico, contém quase tanta verdade quanto um discurso eleitoral
dos nossos dias ou que uma oração fúnebre do século XVII. E se é certo que este
ódio e esta adulação proliferam sobretudo na biografia dos príncipes contemporâneos
dos seus retratistas, também os imperadores mais recuados no tempo são igualmente
difamados ou inocentados consoante as directivas políticas do cronista e as do
presente Augusto. Cómodo foi seguramente um príncipe detestável, mas a sua vida
por Lamprídio não é mais do que um furioso requisitório post mortem, que acaba por despertar no leitor o desejo de tomar
partido a favor de uma besta-fera exposta à execração pública. Os historiadores
apoiam no seu conjunto o grupo plutocrático e conservador em que o Senado se
convertera; os melhores imperadores que puseram cobro a sinecuras senatoriais
são vilipendiados; os piores são exaltados, se saem das fileiras senatoriais ou
se o Senado apostou neles. Mas não há que exigir demasiada consistência aos
biógrafos da História Augusta. Com
mais frequência ainda do que ao preconceito, os seus erros parecem dever-se à
palermice que acolhe sem crítica as primeiras historietas postas a circular, ao
conformismo que os leva a aceitarem sem pestanejar qualquer versão oficial, e,
pelo menos no que diz respeito à primeira parte da compilação, ao desfasamento
no tempo.
Com
efeito, mesmo na hipótese mais favorável, os biógrafos da História Augusta estão separados dos Antoninos, os seus grandes
modelos, por urna distância de quatro a cinco quartos de século. Não era certamente
a primeira vez que um historiador antigo se achava colocado tão longe, ou mesmo
muito mais longe, da personagem que pretendia pintar. Mas o mundo antigo, na
época de Plutarco, era ainda suficientemente homogéneo para que o biógrafo grego
pudesse traçar a cerca de cento e cinquenta anos de distância uma imagem de
César pouco mais ou menos talhada na mesma matéria que César. Na época em que
foi feita a compilação da História
Augusta, o mundo mudara, pelo contrário, ao ponto de tornar o modo de vida
e de pensamento dos grandes Antoninos praticamente impenetrável por biógrafos
postados já no caminho que conduz ao Baixo Império. Um pouco mais aproximados
no tempo, mas mais exóticos, mais depressa deformados pela fantasia popular, os
príncipes da dinastia síria desaparecem mais ainda sob uma floresta de lendas.
As probabilidades de erro devidas ao recuo no tempo diminuem depois progressivamente
com os Augustos que se devoram uns aos outros no decurso do resto do século
III, mas modelos e pintores afundam-então igualmente nesse magma de
confusão, de violência e de mentira que é o dos tempos de crise. De uma ponta à
outra da História Augusta, tudo se
passa como se um pequeno número de homens de letras de hoje, mais ou menos bem
informados, mas medíocres, e muitas vezes mediocremente conscienciosos, nos
contassem em primeiro lugar a história de Napoleão ou a de Luís XVIII
servindo-se de uma mistura de peças autênticas e de anedotas prefabricadas,
anacronicamente coloridas pelas paixões do nossos próprio tempo; e depois,
passando para personagens e acontecimentos mais recentes, nos oferecessem sobre
Jaurés, Pétain, Hitler ou de Gaulle uma massa de historietas sem valor
misturadas com algumas informações úteis, uma avalancha de literatura de
agências de propaganda e de revelações sensacionais de jornais da tarde». In
Marguerite Yourcenar, A Benefício de Inventário, 1962, 1978, Difel, tradução de
Rafael Filipe, Lisboa, 1988, Depósito legal nº 24582.
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