Itália. 1855
«Chegámos a Narni num domingo à noite, já tarde.
Embora a porta do Hotel Fina estivesse fechada, o cocheiro conseguiu arranjar
um criado que saiu aos tropeções, com a fralda da camisa amarrotada, levou a nossa
bagagem para dentro e nos mostrou um quarto que cheirava a pés sujos. Nora tirou-me
a capa e a touca e em seguida apaguei as velas e deitei-me. Um homem gritava ao
longe, talvez por causa da bebida. Em vez de adormecer, viajei através da noite
como se me encontrasse ainda numa carruagem que avançava aos solavancos pelas planícies
de Itália. Pouco depois, ouvi um relógio bater as cinco horas e o ruído de uma carroça
lá fora, na praça, e adormeci ao som de vozes femininas alteradas e de um balde
a embater no empedrado. Acordei com uma nesga de sol que entrava pelas frestas
das portadas, já a manhã ia a meio. Nora estava de pé junto de mim, com o tabuleiro
do pequeno-almoço e uma carta da minha mãe, que não li. Como nenhum dos vestidos
que vinham na mala se encontrava pronto a usar, por estarem muito enrodilhados,
optei outra vez pela minha indumentária de viagem e participei que sairíamos imediatamente.
No átrio, tentei fazer-me entender pela proprietária, que vestia de preto e
cuja boca era descaída nas extremidades, talvez por desespero, mas quando lhe mostrei
o endereço de Henry ela desenhou-nos um mapa tosco.
Narni era uma cidade antiga que se erguia
no cimo de uma colina, e o Hotel Fina ficava no centro, numa praceta. Com um
grupo de mulheres à volta de uma fonte e a confusão das ruas e das fachadas dos
estabelecimentos, era impossível saber qual a direcção certa e partimos ao acaso.
Subimos uma escadaria e passámos por baixo de um arco. O sol estava muito quente,
a rua era opressivamente estreita e os nossos fatos viagem demasiado pesados. Parámos
à sombra de um alpendre, enquanto eu consultava o mapa. Formou-se um grupo de crianças
à nossa volta e, quando perguntei a um rapazinho onde era a Via del Monte, Signora
Critelli, ele seguiu por onde tínhamos vindo. Fomos atrás dele, voltámos a atravessar
a praceta e desta vez mergulhámos numa rua íngreme onde as casas se erguiam tão
perto umas das outras que eu quase conseguia tocar-lhes. peças de roupa íntimas
estavam penduradas nas varandas ou entre dois muros, como bandeiras de Carnaval
encardidas. Fiquei admirada por Henry estar alojado num bairro tão pobre.
Pouco depois, o rapazinho parou em frente
de uma porta aberta onde cheirava a pedra molhada e a flores, porque alguém
acabara de regar um vaso de narcisos. Fiquei ali, indecisa, e desejei nunca ter
saído de Inglaterra, ou pelo menos avisado Henry, para que ele soubesse que eu
ia a caminho. Agora que me encontrava ali, perguntava a mim própria se ele aprovaria
a minha decisão. Além disso, receava vê-lo doente. E se não me reconhecesse, ou
eu a ele? Ao contrário de Rosa, eu nunca sabia o que fazer perante a doença. Olhei
de relance para Nora, mas ela ergueu uma sobrancelha, como se dissesse: foste tu
que nos envolveste nisto; não esperes que eu te encoraje. Por fim, entrei e desemboquei
numa cozinha, onde estava uma mulher com os braços submersos numa selha.
Fitou-me através das gotículas de água que lhe escorriam para os olhos. O doutor
Henry Thewell?, perguntei. Ela ficou embasbacada, enxugou a cara primeiro com uma
toalha e depois com a saia, encostou a mão à soleira da porta e despejou uma torrente
de italiano, que terminou com uma pergunta. Abanei a cabeça. Non capisco. Inglese. Mi chiamo Mariella Lingwood.
Ma-ri-ella. Sou a noiva do doutor Thewell. Dov'e Henry Thewell?
Aprendera, observando o meu pai, que, em momentos
críticos, era preferível falar baixo do que gritar. A verdade é que a Signora Critelli
se acalmou, continuou a falar, mas mais devagar, enxugou as mãos outra vez, fez
um gesto para eu me afastar do caminho e subiu à minha frente um lanço de escadas
estreito que dava acesso ao primeiro andar. Bateu com força a uma porta,
abriu-a completamente e anunciou-me, dizendo: signorina inglese. Dei um passo em frente, e mais outro. O quarto estava
mergulhado numa semiobscuridade porque, embora com uma portada entreaberta,
havia uma cortina azul pardacenta a tapar a janela. Através da sombra, vi que o
quarto era pequeno e que tinha uma cama estreita, um lavatório, uma mesa cheia
de livros e uma cadeira baixa com assento de palhinha, sobre o qual alguém deixara
um tabuleiro com um pãozinho, um jarro e uma chávena ainda intactos. Cheirava a
café frio e a lençóis húmidos». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol,
2007, tradução de Filomena Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN
978-972-461-938-5.
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