O signo da peregrinação
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Ainda que os motivos da eclosão do movimento cruzado pela libertação da Terra
Santa consistam em uma complexa teia de relações políticas, económicas,
culturais, étnicas e religiosas, cuja explicação meramente satisfatória demandaria
centenas de páginas, pode-se afirmar, grosso modo, que um signo em especial
serviu de inspiração para os esforços dos guerreiros cristãos: o signo da peregrinação.
Não é por acaso que sendo a palavra cruzada derivada do latim cruciata, do
espanhol cruzada e do italiano cruzeta, uma designação criada a
posteriori, só surgindo em francês no século XVII, a expedição era chamado
por seuscontemporâneos, dentre outras formas, de peregrinatio contra paganos,
ou seja: peregrinação contra pagãos. Sendo um equivoco imaginar as populações
europeias medievais como estáticas, presas às suas regiões de origem, a
peregrinação de penitência era o primeiro e mais nobre dos motivos para se por
o pé na estrada. Semelhantemente ao profeta Maomé, que colocou entre os
princípios fundamentais do islamismo a obrigação impreterível do seu crente
visitar a cidade de Meca ao menos uma vez na vida, alguns teólogos cristãos
afirmavam ser justo que o seguidor de Jesus de Nazaré também se dispusesse a
gastar a sola de sua sandália em nome de sua fé; também ao menos uma vez na
vida. Estando claro que não se tratava de uma obrigação dogmática, ao contrário
do caso muçulmano, e sim de uma sugestão, parece não existir dúvidas de que os
cristãos acatavam-na com alegria e fé. Apesar da caminhada do peregrino
remeter-se directamente à Via Sacra, com tudo o que ela simboliza em
sofrimento e provação, para tornar-se agradável aos olhos de Deus através da
dor, não se pode afirmar que a remissão dos pecados fosse o único motivo da
existência das peregrinações. Peregrinava-se pelos mais diferentes motivos.
Para pedir por prosperidade material, implorar pela realização de milagres de
cura, pagar promessas por graças alcançadas, meramente orar desinteressado, ou
ainda, suponho não ser contraditório, pelo simples prazer de conhecer outras
paragens, outras paisagens.
Definitivamente
a peregrinação fazia parte do quotidiano do medievo. Além de possuir o seu peso
religioso, constituía-se num ritual social importante. Mesmo aqueles indivíduos
que se encontravam doentes ou ocupados demais para irem por si mesmos, pagavam
assalariados para fazerem o trajecto por substituição. Estes suplentes
caminhariam, orariam e, algumas vezes, se flagelariam em nome dos contratantes.
Os santuários de peregrinação espalhavam-se por toda cristandade. Na França os
mais visitados eram os dedicados ao culto da Virgem, mas de modo geral os
peregrinos preferiam aqueles que ofereciam a visão de alguma relíquia rara ou o
túmulo de um santo ou mártir prestigiado. Elementos palpáveis, por assim dizer,
e portanto mais atraentes do que verdades dogmáticas. As freguesias que possuíssem
um bom chamariz progrediam rapidamente. Se já na Idade Média o dinheiro era o
sangue da cidade, o seu fluido vital, os peregrinos representavam uma rendosa
fonte de receita. Em vista disto as igrejas e abadias concorriam ferozmente
entre si pela atenção dos viajantes. Para atender este mercado incipiente
formou-se na Europa medieval uma verdadeira indústria de comércio e
falsificação de relíquias, com intrincadas relações comerciais que iam desde
Roma à Jerusalém, passando por Constantinopla e Alexandria. Pelo que se sabe
não parecia existir muito bom senso no ramo de compra e venda de relíquias
sacras. Quanto mais extravagantes fossem as peças, melhor. Fragmentos da cruz
de Cristo, fios de cabelos do Nazareno, sudários santos, o crânio de João Baptista,
a Arca da Aliança ou o cobiçado Santo Graal das lendas arturianas eram artigos
correntes. Não era raro que mais de uma diocese afirmasse possuir a mesma peça.
O anedotário sobre este assunto é inesgotável. E quanto mais distante se ia,
maior a penitência e por conseguinte maior o valor do sacrifício junto à
contabilidade divina. Por isto, em contrapartida as numerosas jornadas de curta
distância, feitas em pouco tempo e sem grandes esforços ou gastos, existiam as
grandes peregrinações. Viagens cuja realização eram considerados feitos
extraordinários. Dentre estas, três se destacavam: o Caminho de Roma, o Caminho
de Santiago de Compostela e o Caminho de Jerusalém.
Em
Roma a grande atracção era rezar sobre os túmulos do apóstolo Pedro, a Pedra,
de Paulo de Tarso e dos primeiros mártires assassinados durante a perseguição
romana ao cristianismo primitivo.
O
viajante que se dirigia a Cidade Eterna era conhecido como romeiro e o seu
símbolo de identificação era a cruz, para lembrar tanto o suplício de Jesus de
Nazaré quanto a crucificação de cabeça para baixo de Pedro, na colina do Vaticano.
Porém, apesar de ser a sede da Igreja, a rota até Roma não era a mais popular
da Europa. Em função do seu alto grau de organização, em grande parte a cargo
da poderosa abadia de Cluny, o mais procurado era o que levava até Santiago de
Compostela, na região espanhola da Galiza. Na verdade os seus itinerários eram os
mais diversos: iam da chamada Via Francígena, o caminho italiano, às
rotas marítimas, seguidas pelos flamengos, britânicos e escandinavos, que
percorriam em terra o Caminho Inglês, de Farol e A Corunha até Santiago.
Existia também o Caminho Português, que ia de Lisboa a Compostela cortando de
sul a norte as terras lusitanas, passando por Porto até Barcelos, Ponte de Lima
e Valença do Minho, onde se cruzava o rio Minho, entrando em domínios galegos. Mas
a mais importante das rotas começa na fronteira entre a França e a Espanha, com
os Pirenéus ao fundo, onde se tornam uno os quatro principais itinerários
franceses, no chamado Caminho Francês: conhecido também como O Estranho
Caminho de Santiago». In Ademir L. Silva, Os Cavaleiros da Cruz
Vermelha, Séculos XII e XIII, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de
Goiás, Faculdade de CHeFilosofia, Goiãnia, 2003.
Cortesia
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