sábado, 26 de dezembro de 2015

Contos de Aprendiz. Carlos D. Andrade. «Vocês, criados em cidade grande, não se espantem com esse jeito de nossa infância do interior. Ah, no interior se briga muito. Até mesmo no meu Estado, símbolo de ordem e moderação, terra de bois pacíficos e de políticos suaves e bem-comportados...»

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A Salvação da Alma
«Briga de irmãos... Nós éramos cinco e brigávamos muito, recordou Augusto, olhos perdidos num ponto X, quase sorrindo. Isto não quer dizer que nos detestássemos. Pelo contrário. A gente gostava bastante uns dos outros e não podia viver na separação. Se um de nós ia para o colégio (era longe o colégio, a viagem se fazia a cavalo, dez léguas na estrada lamacenta, que o governo não conservava), os outros ficavam tristes uma semana. Depois esqueciam, mas a saudade do mano muitas vezes estragava o nosso banho no poço, irritava ainda mais o malogro da caça de passarinho: … se Miguel estivesse aqui, garanto que você não deixava o tiziu fugir, gritava Édison. Você assustou ele falando alto... Miguel te quebrava a cara. Miguel era o mais velho, e fora fazer o seu ginásio. Não se sabe bem por que sua presença teria impedido a fuga do pássaro, nem ainda por que o tapa no rosto de Tito, com o tiziu já longínquo, teria remediado o acontecimento. Mas o facto é que a figura de Miguel, evocada naquele instante, embalava nosso desapontamento e de certo modo participava dele, ajudando-nos a voltar para casa de mãos vazias e a enfrentar o risinho malévolo dos Guimarães: … o que é que vocês pegaram hoje? Nada! Miguel era deste tamanho, impunha-se. Além disto, sabia palavras difíceis, inclusive xingamentos, que nos deixavam de boca aberta, ao explodirem na discussão, e que decorávamos para aplicar na primeira oportunidade, em nossas brigas particulares com os meninos da rua. Realmente, Miguel fazia muita falta, embora cada um de nós trouxesse na pele a marca de sua autoridade. E pensávamos com ânsia no seu regresso, um pouco para gozar de sua companhia, outro pouco para aprender nomes feios, e bastante para descontar os socos que ele nos dera, o miserável.
Vocês, criados em cidade grande, não se espantem com esse jeito de nossa infância do interior. Ah, no interior se briga muito. Até mesmo no meu Estado, símbolo de ordem e moderação, terra de bois pacíficos e de políticos suaves e bem-comportados... Há uma força acumulada querendo expandir-se, uma energia que sobrou do tempo da luta com os emboabas, não sei... Olhem: na minha terra damos grande apreço à cultura intelectual. Mas confiamos pouco em seus efeitos. O delegado de polícia, um bacharel gordo e de bigodes fornidos, lia Spinoza, tomava a boa pinga de Januária e não gostava de amolações; se as amolações apareciam, chamava o comandante do destacamento e mandava rachar a lenha. Com o pau cantando, ele voltava ao seu Spinoza. De resto, nas relações civis, em meio semirrural, o tapa, o murro, o pescoção e o cacete são recursos limpos de... polémica. Só o punhal e a garrucha são proibidos; mas, em casos extremos, é lícito empregá-los. O povo não gosta de assassinos, embora inveje os valentes. Ai de quem apanha sem reagir, e isto nós sabíamos de sobra, porque papai o pregava ao almoço e ao jantar, ele que tinha uma vida agitada, no transporte de tropas para o Espírito Santo, negócio perigoso e de lucro incerto, por causa dos rios sem ponte, dos ladrões de estrada, dos camaradas bêbedos, das febres, do crédito a doze meses, dos compradores que fincavam pé no mundo e nunca mais davam as caras... O velho nos contava mais de uma história de noite dormida ao relento, em que ele e seu pessoal acordavam com os animais soltos no campo, aos relinchos, o fogo apagado, e vultos escuros remexendo os alforjes num canto... Pois em nenhuma dessas ocasiões precisou liquidar ninguém, nem permitiu que o fizessem. Tudo acabava com os ladrões amarrados e conduzidos à vila mais próxima, às vezes com algumas costelas quebradas, mas que diabo!, o lombo carece sofrer um bocadinho. Por isso mesmo, um dia ou outro nós nos surrávamos a frio, sem qualquer motivo, porque o lombo carece sofrer, e há um certo prazer em curar ferida». In Carlos Drummond de Andrade, Contos de Aprendiz, 1951, Livraria/Editora José Olympio, Penguin Randon House, grupo Editorial Unipessoal, Companhia das Letras Portugal, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-665-009-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT